Vinicius de Moraes

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Fotomontagem: Vinicius Vieira / Jornal da USP



Dialética

(Montevidéu)

É claro que a vida é boa

E a alegria, a única indizível emoção

É claro que te acho linda

Em ti bendigo o amor das coisas simples

É claro que te amo

E tenho tudo para ser feliz


Mas acontece que eu sou triste...

-Vinicius de Moraes



O verbo no infinito

(Rio de Janeiro)

Ser criado, gerar-se, transformar

O amor em carne e a carne em amor; nascer

Respirar, e chorar, e adormecer

E se nutrir para poder chorar


Para poder nutrir-se; e despertar

Um dia à luz e ver, ao mundo e ouvir

E começar a amar e então sorrir

E então sorrir para poder chorar.


E crescer, e saber, e ser, e haver

E perder, e sofrer, e ter horror

De ser e amar, e se sentir maldito


E esquecer tudo ao vir um novo amor

E viver esse amor até morrer

E ir conjugar o verbo no infinito...

- Vinicius de Moraes



Poética

(Nova York, 1950)

De manhã escureço

De dia tardo

De tarde anoiteço

De noite ardo.


A oeste a morte

Contra quem vivo

Do sul cativo

O este é meu norte.


Outros que contem

Passo por passo:

Eu morro ontem


Nasço amanhã

Ando onde há espaço:

- Meu tempo é quando.

- Vinicius de Moraes



Poema de Natal

Para isso fomos feitos:

Para lembrar e ser lembrados

Para chorar e fazer chorar

Para enterrar os nossos mortos -

Por isso temos braços longos para os adeuses

Mãos para colher o que foi dado

Dedos para cavar a terra.


Assim será a nossa vida:

Uma tarde sempre a esquecer

Uma estrela a se apagar na treva

Um caminho entre dois túmulos -

Por isso precisamos velar

Falar baixo, pisar leve, ver

A noite dormir em silêncio.


Não há muito que dizer:

Uma canção sobre um berço

Um verso, talvez, de amor

Uma prece por quem se vai -

Mas que essa hora não esqueça

E por ela os nossos corações

Se deixem, graves e simples.


Pois para isso fomos feitos:

Para a esperança no milagre

Para a participação da poesia

Para ver a face da morte -

De repente nunca mais esperaremos...

Hoje a noite é jovem; da morte, apenas

Nascemos, imensamente.

- Vinicius de Moraes



O bom pastor

(Rio de Janeiro)

Amo andar pelas tardes sem som, brandas, maravilhosas

Com riscos de andorinhas pelo céu.

Amo ir solitário pelos caminhos

Olhando a tarde parada no tempo

Parada no céu como um pássaro em vôo

E que vem de asas largas se abatendo.

Amo desvendar a vaga penumbra que desce

Amo sentir o ar sem movimento, a luz sem vida

Tudo interiorizado, tudo paralisado na oração calma...


Amo andar nessas tardes...

Sinto-me penetrando o sereno vazio de tudo

Como um raio de luz.

Cresço, projeto-me ao infinito, agitando

Para consolar as árvores angustiadas

E acalmar os pinheiros moribundos.

Desço aos vales como uma sombra de montanha

Buscando poesia nos rios parados.

Sou como o bom-pastor da natureza

Que recolhe a alma do seu rebanho

No agasalho da sua alma...


E amo voltar

Quando tudo não é mais que uma saudade

Do momento suspenso que foi...

Amo voltar quando a noite palpita

Nas primeiras estrelas claras...

Amo vir com a aragem que começa a descer das montanhas

Trazendo cheiros agrestes de selva...

E pelos caminhos já percorridos, voltando com a noite

Amo sonhar...

- Vinicius de Moraes



Duas canções de silêncio

(Oxford)

Ouve como o silêncio

Se fez de repente

Para o nosso amor


Horizontalmente...


Crê apenas no amor

E em mais nada

Cala; escuta o silêncio

Que nos fala

Mais intimamente; ouve

Sossegada

O amor que despetala

O silêncio...


Deixa as palavras à poesia...

- Vinicius de Moraes



Minha namorada

Se você quer ser minha namorada

Ah, que linda namorada

Você poderia ser

Se quiser ser somente minha

Exatamente essa coisinha

Essa coisa toda minha

Que ninguém mais pode ser


Você tem que me fazer um juramento

De só ter um pensamento

Ser só minha até morrer

E também de não perder esse jeitinho

De falar devagarinho

Essas histórias de você

E de repente me fazer muito carinho

E chorar bem de mansinho

Sem ninguém saber por quê


Porém, se mais do que minha namorada

Você quer ser minha amada

Minha amada, mas amada pra valer

Aquela amada pelo amor predestinada

Sem a qual a vida é nada

Sem a qual se quer morrer


Você tem que vir comigo em meu caminho

E talvez o meu caminho seja triste pra você

Os seus olhos têm que ser só dos meus olhos

Os seus braços o meu ninho

No silêncio de depois

E você tem que ser a estrela derradeira

Minha amiga e companheira

No infinito de nós dois

- Vinicius de Moraes



Soneto do amor total

Amo-te tanto, meu amor... não cante

O humano coração com mais verdade...

Amo-te como amigo e como amante

Numa sempre diversa realidade


Amo-te afim, de um calmo amor prestante,

E te amo além, presente na saudade.

Amo-te, enfim, com grande liberdade

Dentro da eternidade e a cada instante.


Amo-te como um bicho, simplesmente,

De um amor sem mistério e sem virtude

Com um desejo maciço e permanente.


E de te amar assim muito e amiúde,

É que um dia em teu corpo de repente

Hei de morrer de amar mais do que pude.

- Vinicius de Moraes



A rosa de Hiroxima

Pensem nas crianças

Mudas telepáticas

Pensem nas meninas

Cegas inexatas

Pensem nas mulheres

Rotas alteradas

Pensem nas feridas

Como rosas cálidas

Mas oh não se esqueçam

Da rosa da rosa

Da rosa de Hiroshima

A rosa hereditária

A rosa radioativa

Estúpida e inválida

A rosa com cirrose

A anti-rosa atômica

Sem cor sem perfume

Sem rosa sem nada.

- Vinicius de Moraes



Saudade que dá

E a lua aparecendo

Diz baixinho uma oração

Não há coisa mais bonita

Que o luar do meu sertão


Terra seca mais danada

Não dá nada, dá saudade

Saudade, saudade que dá

Não dá nada, dá vontade

Vontade de voltar pra lá


Vou mandar rezar um terço

Para ver se de Deus mereço

Uma última bênção

E morrer junto ao meu berço

No luar do meu sertão.

- Vinicius de Moraes




Vinicius de Moraes - Marcus Vinicius da Cruz de Mello Moraes ( 19 de outubro de 1913, Rio de Janeiro - 09 de julho de 1980, Rio de Janeiro). Poeta, compositor, cantor, crítico de cinema, jornalista e diplomata brasileiro.