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Thiago de Mello
Atualizado em
A magia
Eu venho desse reino generoso,
onde os homens que nascem dos seus verdes
continuam cativos esquecidos
e contudo profundamente irmãos
das coisas poderosas, permanentes
como as águas, os ventos e a esperança.
Vem ver comigo o rio e as suas leis.
Vem aprender a ciência dos rebojos,
vem escutar os cânticos noturnos
no mágico silêncio do igapó
coberto por estrelas de esmeralda.
- Thiago de Mello, no livro "Mormaço na floresta".
As ensinanças da dúvida
Tive um chão (mas já faz tempo)
todo feito de certezas
tão duras como lajedos.
Agora (o tempo é que fez)
tenho um caminho de barro
umedecido de dúvidas.
Mas nele (devagar vou)
me cresce funda a certeza
de que vale a pena o amor
- Thiago de Mello, no livro "Mormaço na floresta".
Da eternidade
Da eternidade venho. Dela faço
parte, desde o começo da vida
dos que me fizeram ser
até chegar ao que sou.
Transporto com a minha vida
a eternidade no tempo.
Menino deslumbrado com as águas,
os ventos, as palmeiras, as estrelas,
prolonguei sem saber a eternidade
que neste instante navega
no meu sangue fatigado.
- Thiago de Mello (Santiago, 93), no livro "De uma vez por todas".
Ninguém me habita
Ninguém me habita. A não ser
o milagre da matéria
que me faz capaz de amor,
e o mistério da memória
que urde o tempo em meus neurônios,
para que eu, vivendo agora,
possa me rever no outrora.
Ninguém me habita. Sozinho
resvalo pelos declives
onde me esperam, me chamam
(meu ser me diz se as atendo)
feiuras que me fascinam,
belezas que me endoidecem.
- Thiago de Mello, no livro "De uma vez por todas".
O silêncio da floresta
Tem consistência física,
espessamente doce,
o silêncio noturno da floresta.
Não é como o do vento e vastidão,
cujos dentes de neve
morderam a minha solidão.
Nem como o silêncio aterrador
(no seu âmago o tempo brilha imóvel)
do deserto chileno de Atacama,
onde, um entardecer,
estirado entre areia e pedras,
escutei cheio de assombro
o latir do meu próprio coração.
O silêncio da floresta é sonoro:
os cânticos dos pássaros da noite
fazem parte dele, nascem dele,
são a sua voz aconchegante.
Sozinho no centro da noite amazônica,
escuto o poder mágico do silêncio,
agora quando os pássaros
conversam com as estrelas,
e recito silenciosamente
o nome lindo da mulher que eu amo.
- Thiago de Mello, no livro "Num campo de margaridas".
Sagrada alegria
Não me indago, muito menos
me respondo, sobre a vida
(se existe) depois da vida.
Não invejo (me comove)
a fé que funda a serena
certeza da eternidade.
Do que suceda no reino
que se inaugura na morte,
não me concerne. No mundo
dos homens, meu lindo chão,
quero ser capaz de amar,
mas não sonho galardão
que não seja o da alegria
do amor no meu coração.
- Thiago de Mello, no livro "Num campo de margaridas".
Só sei cantar
Sou simplesmente um cantor.
Já disse que nada invento
nem produzo formatos diferentes.
Minha terra tem palmeiras
onde canta o sabiá.
Canto a luz da primavera,
canto a chuva da floresta,
canto a dor dos deserdados,
e a alvorada da justiça.
Canto o olhar da minha amada
e as pernas dela também.
Canto a plumagem celeste
do tucano que me acorda
e canto o peito encarnado
do rouxinol que chegou
dos altos do Rio Negro
para ver de perto o vôo
das pipiras azuladas.
(Alguns, da arte só pela arte,
me torcem a cara quando
canto em nome do meu povo
a aurora da liberdade.)
Canto o que suja e o que lava,
canto o que dói e o que abranda,
canto a rosa e seu espinho
e a cantiga de ciranda
que se faz de fogo e neve,
canto o amor, de novo canto,
só para aprender a amar.
Mas não canto o que bem quero
pelo gosto de cantar
que às vezes sabe a desgosto.
Canto o que a vida me pede,
imperiosa ou macia,
porque sabe que cantar
é um modo de repartir.
Sou poeta, só sei cantar.
- Thiago de Mello, no livro "De uma vez por todas".
Volto armado de amor
para trabalhar cantando
na construção da manhã.
Anor dá tudo o que tem.
Reparto a minha esperança
e planto a clara certeza
da vida nova que vem.
Um dia, a cordilheira em fogo,
quase calaram para sempre
o meu coração de companheiro.
Mas atravessei o incêndio
e continuo a cantar.
Ganhei sofrendo a certeza
de que o mundo não é só meu.
Mais que viver, o que importa
(antes que a vida apodreça)
é trabalhar na mudança
de que é preciso mudar.
Cada um na sua vez,
cada qual no seu lugar.
- Thiago de Mello, no livro "Mormaço na floresta".
Sei que os tempos são difíceis,
Sei que os tempos são difíceis,
sei que os tempos são de dores,
sei que os dias são ásperos demais
e que o inimigo do homem cada dia
se disfarça menos.
Pois apesar de tudo
eu te digo simplesmente:
resiste!
Resiste, companheiro capricórnio,
resiste, companheiro de qualquer signo!
Resiste, porque o zodíaco é um sol
para quem vive ofendido
no mais profundo da vida.
Resiste, companheiro,
é o que digo a teu amor
porque sei que vais vencer
a luta que é a tua vida
na alegria do teu povo.
Ainda que os braços do inimigo
pareçam tão largos como asas de moinho,
luta, avança, companheiro,
não desanimes nunca,
- e verás a verdade chegar
dentro da manhã
manhã geral de amor
que vai chegar.
- Thiago de Mello, no livro "Horóscopo para os que estão vivos".
O coração latino-americano
Incas, ianomamis, tiahuanacos, aztecas,
mayas, tupis-guaranis, a sagrada intuição
das nações mais saudosas. Os resíduos.
A cruz e o arcabuz dos homens brancos.
O assombro diante dos cavalos,
a adoração dos astros.
Uma porção de sangues abraçados.
Os heróis e os mártires que fincaram no
tempo
a espada de uma pátria maior.
A lucidez do sonho arando o mar.
As águas amazônicas, as neves da
cordilheira.
O quetzal dourado, o condor solitário
o uirapuru da floresta, canto de todos os
pássaros.
A destreza felina das onças e dos pumas.
Rosas, hortênsias, violetas, margaridas,
flores e mulheres de todas as cores,
todos os perfis. A sombra fresca
das tardes tropicais. O ritmo pungente,
rumba, milonga, tango, marinera,
samba-canção.
O alambique de barro gotejando
a luz-ardente do canavial.
O perfume da floresta que reúne,
em morna convivência, a árvore altaneira
e a planta mais rasteirinha do chão.
O fragor dos vulcões, o árido silêncio
do deserto, o arquipélago florido,
a pampa desolada, a primavera
amanhecendo luminosa nos pêssegos e nos
jasmineiros,
a palavra luminosa dos poetas,
o sopro denso e perfumado do mar,
a aurora de cada dia, o sol e a chuva
reunidos na divina origem do arco-íris.
Cinco séculos árduos de esperança.
De tudo isso, e de dor, espanto e pranto,
para sempre se fez, lateja e canta
o coração latino-americano.
- Thiago de Mello, no livro "De uma vez por todas".
Confidência para ser gravada na lâmina da água
Caminho bem na minha solidão,
porque sei de mim mesmo o que perdi.
Não tenho mais precisão de mentir,
Enfrento cara a cara o desamor
que mal me disfarcei. Não fui capaz
de ser o que sonhei, Fiquei aquém
das palavras ardentes que inventei
para que um dia triunfasse o amor,
Porque não dei com medo de perder,
o diamante mais puro no meu peito,
inútil de fulgor se consumiu.
- Thiago de Mello, no livro "Num campo de margaridas".
“Nasci com o ritmo dentro de mim e é da própria vida que nascem os meus poemas. A inspiração vem da vida do homem neste lugar chamado Terra. O que me comove ou me espanta, me dá esperança ou indignação”
- Thiago de Mello, em blog Global editora, 22. 04.2013.
Amadeu Thiago de Mello ( 30 de março de 1926, Barreirinha, Amazonas - 14 de janeiro de 2022, Manaus, Amazonas). Poeta, tradutor, escritor, jornalista, artista gráfico e roteirista brasileiro.