Ronald de Carvalho

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Retrato de Ronald de Carvalho, 1921

Vicente do Rego Monteiro

Coleção Gilberto Chateaubriand - MAM/RJ



Écloga tropical

Entre a chuva de ouro das carambolas

e o veludo polido das jabuticabas,

sobre o gramado morno,

onde voam borboletas e besouros,

sobre o gramado lustroso

onde pulam gafanhotos de asas verdes e vermelhas,


Salta uma ronda de crianças!

O ar é todo perfume,

perfume tépido de ervas, raízes e folhagens.


O ar cheira a mel de abelhas...


E há nos olhos castanhos das crianças

a doçura e o travor das resinas selvagens,

e há nas suas vozes agudas e dissonantes

um áureo rumor de flautas, de trilos, de zumbidos

e de águas buliçosas...

- Ronald de Carvalho, no livro “Epigramas Irônicos e Sentimentais”, 1922.


A um adolescente

Faze do instante que passa

Toda a tua aspiração;

Que o mundo cheio de graça

Caberá na tua mão!


Sê sóbrio: com um copo de água,

Um fruto, e um pouco de pão.

Nem sombra de leve mágoa

Cortará teu coração.


Ama a rude terra virgem,

Com todo o teu rude amor;

Pois colherás na vertigem

De cada sonho, uma flor.


Sofre em silêncio, sozinho,

Porque os sofrimentos são

O mais saboroso vinho

Para a sombra e a solidão...


E quando, um dia, o cansaço

Descer ao teu coração,

Une à terra o peito lasso,

E morre beijando o chão;


Morre assim como indeciso

Fumo, que nos ares vai,

Morre num breve sorriso,

Como uma folha que cai...

- Ronald de Carvalho, em 'Poemas da vida', “Poemas e Sonetos”, 1919.



Doçura da chuva

DOÇURA melancólica da chuva,

dos muros úmidos, das ruas cheias de água barrenta,

da atmosfera pesado, sonolenta,

doçura da chuva..


Doçura melancólica da chuva,

quando não há cartas de amor para rasgar,

quando não há rondeis nem bailadas para rimar,

e o vide, parece, onde méis devagar!

doçura de chuva..


Doçura melancólica da chuva,

quando ficam rasos de água os olhos dos homens líricos,

quando as penas marcham ao compasso grave dos alexandrinos,

e jorram dos corações sonetos sentimentais.


Melancolia irônico de chuva,

sob uma epígrafe bucólico de Sá de Miranda,

no redondilha dos madrigais.


Monotonia da chuva indiferente, calma,

caindo nos charcos, caindo nos pântanos,


caindo na alma.

Doçura melancólica de chuva!

- Ronald de Carvalho, no livro “Epigramas Irônicos e Sentimentais”, 1922.



Anoitece...

Venho sofrer contigo a hora dolente que erra,

Sob a lâmpada amiga, entre um vaso com rosas,

Um festão de jasmins, e a penumbra que desce...

Hora em que há mais distância e mágoa pela terra;

Quando, sobre os chorões e as águas silenciosas,

Redonda, a lua calma e sutil, aparece...


O rumor de uma voz sobe no espaço, ecoando,

Mais um dia se foi, menos uma ilusão!

E assim corre, igualmente, a ampulheta da vida.

Senhor! depois de mim, como folhas em bando,

Num crepúsculo triste, outros homens virão

Para recomeçar a rota interrompida,

E a amargura sem fim de um mesmo sonho vão...


Nos dormentes jardins bolem asas incautas,

Sobre os campos a bruma ondeia, devagar.

Estremecem no céu estrelas sonolentas

E os rebanhos, que vão na neblina lunar,

Agitam molemente, ao longe, as curvas lentas

Das estradas de esmalte, ao rudo som das frautas.


Anoitece...

Tremula ainda, no poente, a luz de alguns clarões,

E, enquanto sobre o meu teu olhar adormece,

Entre o perfil sombrio e vago dos chorões,

Redonda, a lua calma e distante, aparece...

- Ronald de Carvalho, em ‘Noturnos’, “Poemas e Sonetos”, 1919.



II

Sobre o rio tranquilo, espelha-se um pomar.

Brilham nas sombras, entre as árvores, ao luar,


A torre de granito, o pesado quadrante,

E os dourados delfins de teu parque distante.


Em redor dos rosais correm, cantando, as fontes,

Solitários lampiões adormecem nas pontes.


Sob a névoa de azuis, que envolve todo o espaço,

A paisagem parece uma gravura de aço.


Tudo está quieto; no ar apenas estremece,

Com um longínquo rumor de lágrima ou de prece,


A pluma de um repuxo! E como a água relumbra

No cofre de veludo espesso da penumbra!


E como a água, a subir e a descer, levemente,

Lembra o teu coração gelado e indiferente!...

- Ronald de Carvalho, em ‘Noturnos’, “Poemas e Sonetos”, 1919.



Vento noturno

Volúpia do vento noturno,

do vento que vem das montanhas e das ondas,

do vento que espalha no espaço o cheiro das resinas,

a exalação da maresia e do mato virgem,

das mangas maduras, das magnólias e das laranjas,

dos lírios do brejo e das praias úmidas.


Volúpia do vento noturno nas noites tropicais,

quando o brilho das estrelas é fixo, duro,

quando sobe da terra um hálito quente, abafado,


e a folhagem lustrosa lembra o aço polido.

Volúpia do vento morno do verão,

carregado de odores excitantes,

como um corpo de mulher adolescente,

de mulher que espera o momento do amor...


Volúpia do vento noturno em minha terra natal!

- Ronald de Carvalho, no livro “Epigramas Irônicos e Sentimentais”, 1922.




Silêncio

Ninguém... A noite dorme, silenciosa.

Pela encosta dos morros sobe a lua.

Que esquisita saudade se insinua

Na noite silenciosa!


As árvores, nos ermos, estão quietas;

E, ao luar, que inunda as calmas alamedas,

Há um brilho de vidrilhos e de sedas

Entre as árvores quietas.


Que mão sutil nas relvas orvalhadas

Derramou tanta jóia e pedraria?

Parece até que vai nascer o dia

Nas relvas orvalhadas!


Rola um perfume de jasmins no ambiente.

E, entre a sombra que envolve toda a altura,

Um repuxo finíssimo murmura

No desolado ambiente..

- Ronald de Carvalho, em 'Poemas da Natureza', [dedicado a Tristão da Cunha], “Poemas e Sonetos”, 1919.



(...) Respeitemos as tradições, saibamos compreender a obra do passado, mas não nos confinemos dentro de fórmulas rígidas, nem confundamos o preconceito com a verdade. Não devemos afirmar, a exemplo de Marinetti, que um automóvel lançado em vertiginosa carreira é mais belo que a Victoria de Samathracia. Devemos fazer, ao contrário, de todas as coisas uma obra de beleza, retirando delas a energia alegre e saudável de que necessitamos. É preciso não esquecer que cada homem traz consigo a sua fórmula, cada homem é um momento de harmonia universal. A modernolatria, entretanto, é tão perigosa como a classicolatria. Dentro, desses dois pólos está a sabedoria. Libertemo-nos tanto de um quanto de outro preconceito."

- Ronald de Carvalho, in "O espelho de Ariel".



O canto que me ensinaste

O CANTO que me ensinaste foi virgem e livre:

todas as águas balançaram nele,

todos os ventos murmuraram nele,

todos os perfumes se impregnaram nele.


Foi como um vôo,

foi como um vôo longo, longo,

um vôo todo verde no teu sol todo de ouro, no teu ar todo azul;

o canto virgem, o canto livre que me ensinaste.

- Ronald de Carvalho, in "Jogos Pueris", 1926.





Ronald de Carvalho (16 de maio de 1893, Rio de Janeiro - 15 de fevereiro de 1935, Rio de Janeiro). Diplomata e poeta brasileiro.