Rainer Maria Rilke

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Solidão

A solidão é como uma chuva.

Ergue-se do mar ao encontro das noites;

de planícies distantes e remotas

sobe ao céu, que sempre a guarda.

E do céu tomba sobre a cidade.


Cai como chuva nas horas ambíguas,

quando todas as vielas se voltam para a manhã

e quando os corpos, que nada encontraram,

desiludidos e tristes se separam;

e quando aqueles que se odeiam

têm de dormir juntos na mesma cama:


então, a solidão vai com os rios...

- Rainer Maria Rilke, em "O Livro das Imagens", 1902 (tradução Maria João Costa Pereira).



Amo as horas noturnas

Amo as horas noturnas do meu ser em

que se me aprofundam os sentidos;

nelas fui eu achar, como em cartas velhissimas,

já vivida a vida dos meus dias

e como lenda longínqua e superada.


Delas eu aprendi que tenho espaço

para uma segunda vida, vasta e sem tempo.


E por vezes me sinto como a árvore

que, madura e rumorosa, sobre uma campa

realiza o sonho que o menino foi

(em volta do qual apertam suas raízes quentes)

e perdeu em tristezas e canções.

- Rainer Maria Rilke, em "Poemas, As elegias de Duíno e Sonetos a Orfeu" (tradução Paulo Quintela).




“O destino gosta de inventar desenhos e figuras. A dificuldade dele reside no complicado. A vida mesma, porém, é difícil pela simplicidade. Tem apenas algumas coisas de um tamanho que nos não é adequado. O santo, rejeitando o destino, escolhe estas coisas, em face de Deus. Mas que a mulher, conforme à sua natureza, tenha de fazer a mesma escolha em relação ao homem, é o que evoca a fatalidade de todas as relações de amor: resoluta e sem destino como uma eterna, ergue-se ela ao lado dele, dele que se transforma. Sempre a amante ultrapassa o amado, porque a vida é maior do que o destino. O dom de si mesma quer ser desmedido: é esta a sua ventura. A dor inominada do seu amor, porém, foi sempre esta: que se exija dela que limite este dom de si mesma.”

- Rainer Maria Rilke, em "Os cadernos de Malte Laurids Brigge" (tradução Paulo Quintela).




Sou eu, não temas. Não me ouves quebrar

em ti todos os meus sentidos?

O meu sentir que asas veio a encontrar,

voa, branco, à volta da tua face sem ruídos.

Não vês a minha alma de silêncio vestida

mesmo frente a ti aparecida?

Não amadurece minha oração em flor

no teu olhar como numa árvore de suave odor?

Eu sou o teu sonho, se sonhador fores.

Sou a tua vontade, se velar quiseres

e apodero-me da magnificência sem par

e arredondo-me como um silêncio estelar

sobre a estranha cidade do tempo a passar.

-Rainer Maria Rilke, em “O Livro de Horas” (tradução de Maria Teresa Dias Furtado).



A Pantera

(No Jardin des Plantes, Paris)


De tanto olhar as grades seu olhar

esmoreceu e nada mais aferra.

Como se houvesse só grades na terra:

grades, apenas grades para olhar.


A onda andante e flexível do seu vulto

em círculos concêntricos decresce,

dança de força em torno a um ponto oculto

no qual um grande impulso se arrefece.


De vez em quando o fecho da pupila

se abre em silêncio. Uma imagem, então,

na tensa paz dos músculos se instila

para morrer no coração.

- Rainer Maria Rilke, em "Novos poemas I" (1907).



Hora grave

Quem agora chora em algum lugar do mundo,

Sem razão chora no mundo,

Chora por mim.


Quem agora ri em algum lugar na noite,

Sem razão ri dentro da noite,

Ri-se de mim.


Quem agora caminha em algum lugar no mundo,

Sem razão caminha no mundo,

Vem a mim.


Quem agora morre em algum lugar no mundo,

Sem razão morre no mundo,

Olha para mim.


- Rainer Maria Rilke, em "O livro de imagens" (1902) (tradução Paulo Plínio Abreu).



O encantador de serpentes

Quando na praça, ondeando, o encantador

toca a flauta que embala e entorpece,

às vezes ele atinge ao seu redor

alguém, em meio à turba, e o adormece,


e o faz entrar no círculo da flauta,

que quer e quer e quer e vai e volta,

até que emerja a cabeça alta

do réptil, que do seu cesto se solta,


alternando tontura e lassidão,

o que expande e tensiona e o que represa —;

basta um olhar daquele indiano, então,

para infundir no outro uma estranheza


que te mata. Como se de repente

o céu caísse. De súbito estrias

racham-te o rosto. Há especiarias

na memória boreal e a tua mente


de nada serve. Inútil, a magia.

O sol fermenta, vêm febres ferventes,

os raios têm maléfica alegria

e o veneno cintila nas serpentes.

- Rainer Maria Rilke, em "Novos poemas II" (1908).



O homem que contempla

Vejo que as tempestades vêm aí

pelas árvores que, à medida que os dias se tomam mornos,

batem nas minhas janelas assustadas

e ouço as distâncias dizerem coisas

que não sei suportar sem um amigo,

que não posso amar sem uma irmã.


E a tempestade rodopia, e transforma tudo,

atravessa a floresta e o tempo

e tudo parece sem idade:

a paisagem, como um verso do saltério,

é pujança, ardor, eternidade.


Que pequeno é aquilo contra que lutamos,

como é imenso, o que contra nós luta;

se nos deixássemos, como fazem as coisas,

assaltar assim pela grande tempestade, —

chegaríamos longe e seríamos anônimos.


Triunfamos sobre o que é Pequeno

e o próprio êxito torna-nos pequenos.

Nem o Eterno nem o Extraordinário

serão derrotados por nós.

Este é o anjo que aparecia

aos lutadores do Antigo Testamento:

quando os nervos dos seus adversários

na luta ficavam tensos e como metal,

sentia-os ele debaixo dos seus dedos

como cordas tocando profundas melodias.


Aquele que venceu este anjo

que tantas vezes renunciou à luta.

esse caminha ereto, justificado,

e sai grande daquela dura mão

que, como se o esculpisse, se estreitou à sua volta.

Os triunfos já não o tentam.

O seu crescimento é: ser o profundamente vencido

por algo cada vez maior.

- Rainer Maria Rilke, em "O Livro das Imagens", 1902 (tradução Maria João Costa Pereira).



O mundo estava no Rosto

O mundo estava no rosto da amada -

e logo converteu-se em nada, em

mundo fora do alcance, mundo-além.


Por que não o bebi quando o encontrei

no rosto amado, um mundo à mão, ali,

aroma em minha boca, eu só seu rei?


Ah, eu bebi. Com que sede eu bebi.

Mas eu também estava pleno de

mundo e, bebendo, eu mesmo transbordei.

- Rainer Maria Rilke, em "Quatro Poemas Esparsos" (1908).



Dançarina espanhola

Como um fósforo a arder antes que cresça

a flama, distendendo em raios brancos

suas línguas de luz, assim começa

e se alastra ao redor, ágil e ardente,

a dança em arco aos trêmulos arrancos.


E logo ela é só flama, inteiramente.


Com um olhar põe fogo nos cabelos

e com a arte sutil dos tornozelos

incendeia também os seus vestidos

de onde, serpentes doidas, a rompê-los,

saltam os braços nus com estalidos.


Então, como se fosse um feixe aceso,

colhe o fogo num gesto de desprezo,

atira-o bruscamente no tablado

e o contempla. Ei-lo ao rés do chão, irado,

a sustentar ainda a chama viva.

Mas ela, do alto, num leve sorriso

de saudação, erguendo a fronte altiva,


pisa-o com seu pequeno pé preciso.

- Rainer Maria Rilke, em "Novos poemas I" (1907).




"O que se torna preciso é, no entanto, isto: solidão, uma grande solidão interior. Entrar em si mesmo, não encontrar ninguém durante horas - eis o que se deve saber alcançar. Estar sozinho como se estava quando criança, enquanto os adultos iam e vinham, ligados a coisas que pareciam importantes e grandes porque esses adultos tinham um ar tão ocupado e porque nada se entendia de suas ações."

- Rainer Maria Rilke, em "Cartas a um jovem poeta” (tradução Paulo Rónai).







Rainer Maria Rilke ( 04 de dezembro de 1875, Praga, República Tcheca - 29 de dezembro de 1926, Valmont, Suíça). Escritor e poeta.