Pablo Neruda

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Infância e Poesia

“Começarei por dizer, sobre os dias e anos de minha infância, que minha única personagem inesquecível foi a chuva. A grande chuva austral que cai como uma catarata do polo, desde o céu do cabo de Hornos até a fronteira. Nesta fronteira, o Far West de minha pátria, nasci para a vida, para a terra, para a poesia e para a chuva.”

-Pablo Neruda, no livro “Confesso que vivi”.



“Na casa dos Manson havia um salão onde nós, crianças, não podíamos entrar. Nunca soube qual a verdadeira cor dos móveis, porque estiveram cobertos com panos brancos até que foram devorados por um incêndio. Havia ali um álbum com fotografias de família . Estas fotos eram mais finas e delicadas que as terríveis ampliações coloridas que invadiram depois a fronteira.

Ali havia um retrato de minha mãe. Era uma senhora vestida de negro, delgada e pensativa. Disseram-me que escrevia versos, mas nunca os vi. Dela, só vi aquele belo retrato.

-Pablo Neruda, no livro “Confesso que vivi”.



“Meu pai havia se casado em segundas núpcias com Dona Trinidad Candia Marverde, minha madrasta. Parece-me incrível ter que dar este nome ao anjo tutelar de minha infância. Era diligente e doce, tinha um senso de humor camponês, uma bondade ativa e infatigável.”

-Pablo Neruda, no livro “Confesso que vivi”.



Amazonas

Amazonas,

capital das sílabas da água,

pai patriarca, és

a eternidade secreta

das fecundações,

te caem rios como aves, te cobrem

os pistilos cor de incêndio,

os grandes troncos mortos te povoam de perfume,

a lua não pode vigiar-te ou medir-te.

És carregado de esperma verde

como árvore nupcial, és prateado

pela primavera selvagem,

és avermelhado de madeiras,

azul entre a lua das pedras.

vestido de vapor ferruginoso,

lento como um caminho de planeta.

-Pablo Neruda, no livro “Canto Geral” (tradução de Paulo Mendes Campos).



Castro Alves do Brasil

Castro Alves do Brasil, para quem cantaste? Para a flor cantaste? Para a água cuja formosura diz palavras às pedras? Cantaste para os olhos para o perfil recortado da que então amaste? Para a primavera?

Sim, mas aquelas pétalas não tinham orvalho, aquelas águas negras não tinham palavras, aqueles olhos eram os que viram a morte, ardiam ainda os martírios por detrás do amor, a primavera estava salpicada de sangue

– Cantei para os escravos, eles sobre os navios como um cacho escuro da árvore da ira, viajaram, e no porto se dessangrou o navio deixando-nos o peso de um sangue roubado.

– Cantei naqueles dias contra o inferno, contra as afiadas línguas da cobiça, contra o ouro empapado de tormento, contra a mão que empunhava o chicote, contra os dirigentes de trevas.

– Cada rosa tinha um morto nas raízes. A luz, a noite, o céu, cobriam-se de pranto, os olhos apartavam-se das mãos feridas e era a minha voz a única que enchia o silêncio.

-Pablo Neruda (trecho selecionado), do livro “Canto Geral” (tradução de Paulo Mendes Campos).



SAUDADE

SAUDADE ... — Que será.. eu não sei... tenho buscado

em certos dicionários poeirentos e antigos

e outros livros que ocultam o significado

dessa doce palavra de perfis ambíguos.


Dizem que as montanhas são azuis como ela,

que nela empalidecem longínquos amores,

e um nobre e bom amigo meu (e das estrelas)

nomeia com os cílios e as mãos em tremores.


E no Eça de Queiroz sem olhar a adivinho,

o segredo se evade em sua doçura e sede,

com essa mariposa, corpo em desalinho,

Sempre longe - tão longe! - das minhas calmas redes.


Saudade... tens, vizinho, o real significado

dessa palavra branca que, peixe, se evade?

Não... trem na boca seu tremor delicado...

Saudade…

- Pablo Neruda, em "Crepusculário" (tradução José Eduardo Degrazia).


"Em todas as épocas a poesia foi dada como morta, ela porém se tem mostrado centrífuga e sempiterna, se tem mostrado vitalícia, ressuscita com grande intensidade, parece ser eterna. Com Dante pareceu que terminava. Porém pouco depois Jorge Marinque lançava uma centelha, espécie de sputinik, que prosseguia cintilando nas trevas. E logo Victor Hugo parecia arrasar, não ficava nada para os demais. Então o senhor Charles Baudelaire apresentou-se corretamente trajado de dândi, seguido do jovem Arthur Rimbaud, trajado de vagabundo, e a poesia começou de novo. Depois de Walt Whitman, que esperança!, já ficaram plantadas todas as folhas de relva, não se podia pisar no relvado. Não obstante, veio Maiakovski e a poesia parecia uma casa de máquinas: deram-se assobios, disparos, suspiros, soluços, ruídos de trens e de carros blindados. E assim prossegue a história.

É claro que os inimigos da poesia sempre pretenderam assestar-lhe uma pedrada num olho ou um golpe de garrote na nuca. Fizeram-no de diversos modos, como marechais individuais, inimigos da luz, ou regimentos burocráticos que marcharam com passo de ganso contra os poetas. Conseguiram a desesperação de alguns, a decepção de outros, as tristes retificações dos menos. Mas a poesia começou a brotar como uma fonte ou manar como uma ferida, ou a construir com o braço partido, ou a cantar no deserto, ou a levantar-se como uma árvore, ou a transbordar como um rio, ou a estrelar-se como a noite nas mesetas da Bolívia.

A poesia acompanhou os agonizantes e estancou as dores, conduziu às vitórias, acompanhou os solitários, foi queimante como o fogo, leve e fresca como a neve, teve mãos, dedos e punhos, teve brotos como a primavera, teve olhos como a cidade de Granada, foi mais veloz do que os projéteis dirigidos, foi mais forte pelas fortalezas: deitou raízes no coração do homem.

[...] A poesia tem comunicação secreta com os sofrimentos do homem. Há que ouvir os poetas. É uma lição de história."

- Pablo Neruda, em "Respondendo a uma pesquisa", no livro “Para nascer nasci” (tradução Rolando Roque da Silva).


JUVENTUDE

Um perfume como uma ácida espada

de cerejas no caminho,

os beijos do açúcar nos dentes,

as gotas vitais resvalando nos dedos,

a doce polpa erótica,

as eiras, os paióis, os incitantes

lugares secretos das casas amplas,

os colchões dormidos no passado, o acre vale verde

olhado de cima, da vidraça escondida:

toda a adolescência molhando-se e ardendo

com uma lâmpada derrubada na chuva.

-Pablo Neruda, no livro “Canto Geral” (tradução de Paulo Mendes Campos).



FINAL

FORAM CRIADAS por mim estas palavras

com o meu sangue e com as dores minhas

foram criadas!

Tudo eu compreendo, amigos, eu compreendo tudo.

Misturaram-se vozes alheias às minhas,

tudo eu compreendo, amigos!

Como se voar eu quisesse e me chegassem

para me ajudar as asas das aves,

todas as asas,

assim vieram as palavras estrangeiras

desatar a ebriedade escura de minha alma.


É manhã, e parece

que não se me apertaram as angústias

em tão terríveis nós em torno da garganta.

E no entanto,

foram criadas,

com o meu sangue e com as dores minhas,

foram criadas por mim estas palavras!


Palavras para alegria

quando era meu coração

uma coroa de chamas

palavras de dor que penetra,

e dos instintos que remordem,

e dos impulsos que ameaçam,

e dos infinitos desejos,

e das inquietudes amargas,

palavras de amor que em minha vida florescem

como terra roxa cheia de umbelas brancas.


Não caiam em mim, nunca couberam.

Menino minha dor foi grito,

foi minha alegria silêncio.


Depois os olhos

esqueceram as lágrimas

do coração de todos varridos no vento.


Agora, digam-me, amigos,

onde esconder aquela aguda

fúria de soluços.


Diga-me, amigos, onde

esconder o silêncio para que ninguém

nunca o sentisse com os ouvidos ou olhos.


As palavras vieram e meu coração,

incontido como um amanhecer,

rompeu-se nas palavras, no apego do voo,

e em suas fugas heróicas o levam e arrastam,

adandonando e louco, e esquecido sob elas

como um pássaro morto, embaixo de suas asas.

- Pablo Neruda, em "Crepusculário" (tradução José Eduardo Degrazia).


SE CADA DIA CAI

Se cada dia cai,

dentro de cada noite,

há um poço

onde a claridade está presa.

há que sentar-se na beira

do poço da sombra

e pescar luz caída

com paciência.

-Pablo Neruda, “Últimos Sonetos” (tradução de Luiz de Miranda).




Pablo Neruda - Neftali Ricardo Reyes ( 12 de julho de 1904, Parral, Chile - 23 de setembro de 1973, Santiago, Chile). Diplomata e poeta chileno.