Octavio Paz

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"Somos feitos de palavra. Elas são nossa única realidade ou, pelo menos, o único testemunho de nossa realidade. Não há pensamento sem linguagem, nem tampouco objeto de conhecimento: a primeira coisa que o homem faz diante de uma realidade desconhecida é nomeá-la, batizá-la."

- Octávio Paz, em "O arco e a lira" (tradução de Olga Savary).



Destino do Poeta

Palavras? Sim, De ar

e perdidas no ar.

Deixa que eu me perca entre palavras,

deixa que eu seja o ar entre esses lábios,

um sopro erramundo sem contornos,

breve aroma que no ar se desvanece.


Também a luz em si mesma se perde.

- Octavio Paz, em “Transblanco: em Torno a Blanco de Octavio Paz” (tradução Haroldo de Campos).



Escritura

Quando sobre o papel a pena escreve,

a qualquer hora solitária,

quem a guia?

A quem escreve o que escreve por mim,

margem feita de lábios e de sonho,

colina quieta, golfo,

ombro para esquecer o mundo para sempre?


Alguém escreve em mim, move-me a mão,

escolhe uma palavra, se detém,

pende entre mar azul e monte verde.

Com um ardor gelado

contempla o que escrevo.

A tudo queima, fogo justiceiro.

Mas o juiz também é justiçado

e ao condenar-me se condena:

não escreve a ninguém, a ninguém chama,

escreve-se a si mesmo, em si se esquece,

e se resgata, e volta a ser eu mesmo.

- Octavio Paz, em “Transblanco: em Torno a Blanco de Octavio Paz” (tradução Haroldo de Campos).



Mistério

Alumbram ares, alumbra

o meio-dia, relumbra,

e não vejo o sol.


Já de presença em presença

tudo se me transparenta,

e não vejo o sol.


Perdido nas transparências

vou de reflexo a fulgor,

e não vejo o sol.


E ele na luz se desnuda

e a cada esplendor pergunta,

e não vê o sol.

- Octavio Paz, em “Transblanco: em Torno a Blanco de Octavio Paz” (tradução Haroldo de Campos).



Retórica

1

Cantam os pássaros, cantam

sem saber o que cantam:

seu entendimento é sua garganta.


2

A forma que se ajusta ao movimento

é pele — não prisão — do pensamento.


3

O claro do cristal transparente

para mim não é claro suficiente:

água clara é a água corrente.

- Octavio Paz, em “Transblanco: em Torno a Blanco de Octavio Paz” (tradução Haroldo de Campos).



Frente ao Mar

1

Chove no mar.

Ao mar o que é do mar

e que as herdades sequem.


2

A onda não tem forma?

Num instante se esculpe,

no outro se desmorona

à que emerge, redonda.

Seu movimento é forma.


3

As ondas se retiram

- ancas, espáduas, nucas -

logo voltam as ondas

-peitos, bocas, espumas.


4

Morre de sede o mar.

Se retorce, sozinho,

em sua cama de rochas.

Morre de sede de ar.

- Octavio Paz, em “Transblanco: em Torno a Blanco de Octavio Paz” (tradução Haroldo de Campos).



Entressonho

Manhã. O relógio canta.

O mundo cala, vazio.

Sonâmbula te levantas

e olhas não sei que sombras

detrás de tua sombra: nada.

Arrastada pela noite,

igual à ramagem branca.

- Octavio Paz, em “Transblanco: em Torno a Blanco de Octavio Paz” (tradução Haroldo de Campos).



Escrito com Tinta Verde

A tinta verde cria jardins, selvas, prados,

folhagens onde gorjeiam letras,

palavras que são árvores,

frases de verdes constelações.


Deixa que minhas palavras, ó branca, desçam e te cubram

como uma chuva de folhas a um campo de neve,

como a hera à estátua,

como a tinta a esta página.


Braços, cintura, colo, seios,

fronte pura como o mar,

nuca de bosque no outono,

dentes que mordem um talo de grama.


Teu corpo se constela de signos verdes,

renovos num corpo de árvore.

Não te importe tanta miúda cicatriz luminosa:

olha o céu e sua verde tatuagem de estrelas.

- Octavio Paz, em “Transblanco: em Torno a Blanco de Octavio Paz” (tradução Haroldo de Campos).



As Palavras

Girar em torno delas,

virá-las pela cauda (guinchem, putas),

chicoteá-las,

dar-lhes açucar na boca, às renitentes,

inflá-las, globos, furá-las,

chupar-lhes sangue e medula,

secá-las,

capá-las,

cobri-las, galo, galante,

torcer-lhes o gasnete, cozinheiro,

depená-las, touro,

bois, arrastá-las,

fazer, poeta,

fazer com que engulam todas as suas palavras.

- Octavio Paz, em “Transblanco: em Torno a Blanco de Octavio Paz” (tradução Haroldo de Campos).





Octavio Paz (31 de março de 1914, Cidade do México - 19 de abril de 1998, Cidade do México). Ensaista, tradutor, poeta e diplomata mexicano.