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Natália Correia
Atualizado em
Ode à paz
Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,
Pelas aves que voam no olhar de uma criança,
Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
Pela branda melodia do rumor dos regatos,
Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,
Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos,
Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
Pelos aromas maduros de suaves outonos,
Pela futura manhã dos grandes transparentes,
Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,
Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
Abre as portas da História,
deixa passar a Vida!
- Natália Correia, em "Poesia completa - Natália Correia".
O poema
O poema não é o canto
que do grilo para a rosa cresce.
O poema é o grilo
é a rosa
e é aquilo que cresce.
É o pensamento que exclui
uma determinação
na fonte donde ele flui
e naquilo que descreve.
O poema é o que no homem
para lá do homem se atreve.
Os acontecimentos são pedras
e a poesia transcendê-las
na já longínqua noção
de descrevê-las.
E essa própria noção é só
uma saudade que se desvanece
na poesia. Pura intenção
de cantar o que não conhece.
- Natália Correia, em "Poemas". 1955.
Rocochete
Que margens têm os rios?
para além das suas margens?
Que viagens são navios?
Que navios são viagens?
Que contrário é uma estrela?
Que estrela é este contrário
de imaginarmos por vê-la
tudo à volta imaginário?
Que paralelas partidas
nos articulam os braços
em formas interrompidas
para encarnar um espaço?
Que rua vai dar ao tempo?
Que tempo vai dar à rua
onde o relógio do vento
pára na hora da lua?
Que palavra é o silêncio?
Que silêncio é esta voz
que num soluço suspenso
chora cá dentro por nós?
- Natália Correia, em "Passaporte". 1958.
O sol nas noites e o luar nos dias
De amor nada mais resta que um Outubro
e quanto mais amada mais desisto:
quanto mais tu me despes mais me cubro
e quanto mais me escondo mais me avisto.
E sei que mais te enleio e te deslumbro
porque se mais me ofusco mais existo.
Por dentro me ilumino, sol oculto,
por fora te ajoelho, corpo místico.
Não me acordes. Estou morta na quermesse
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie
nem teus zelos amantes a demovem.
Mas quanto mais em nuvem me desfaço
mais de terra e de fogo é o abraço
com que na carne queres reter-me jovem.
- Natália Correia, em "Poesia completa - Natália Correia".
VII - O livro dos amantes
Tu pedes-me a noção de ser concreta
num sorriso num gesto no que abstrai
a minha exactidão em estar repleta
do que mais fica quando de mim vai.
Tu pedes-me uma parcela de certeza
um desmentido do meu ser virtual
livre no resultado de pureza
da soma do meu bem e do meu mal.
Deixa-me assim ficar. E tu comigo
sem tempo na viagem de entender
o que persigo quando te persigo.
Deixa-me assim ficar no que consente
a minha alma no gosto de reter-te
essencial. Onde quer que te invente.
- Natália Correia, em "Poemas". 1955.
Com a essência das flores mais coniventes...
Com a essência das flores mais coniventes
Na formosura, prepara o banho, Lídia.
Os anos murcham e só no corpo sentes
Quente e fagueira a passagem da vida.
Não digas, cética, que a carne é vã e passa
Desfeita em sombra, o negro rio. O Orco
Perséfone raptou rendido à graça.
Talvez no além precises do teu corpo.
Estima-o; e à beleza mais demora
Darão os fados na vida passageira.
Tépida a água, rescenda a musgo e a rosa.
De Paros seja o mármore da banheira.
Nua e rosada imerge na carícia
Emoliente da água perfumada,
E as folhas lassas dos membros espreguiça
Como uma humanizada flor aquática.
Não te esqueças porém de no amavio
Da água verter um brando óleo de malvas
Que te aveluda as coxas e mais brilho
Te dá ao polimento das espáduas.
E saindo do banho como a deusa
Sai, das macias ondas, nacarada,
Ergue-te para o amor, estátua de seda
Toda coberta com pérolas de água.
Por fim veste a camisa mais picante;
Com pó de ouro empoa o teu cabelo.
E vai para a alcova onde o teu amante
Te espera radioso e fiel como um espelho.
- Natália Correia, em "O armistício". 1985.
A exaltação da pele
Hoje quero com a violência da dádiva interdita.
Sem lírios e sem lagos
e sem gesto vago
desprendido da mão que um sonho agita.
Existe a seiva. Existe o instinto. E existe eu
suspensa de mundos cintilantes pelas veias
metade fêmea metade mar como as sereias.
- Natália Correia, em "Poemas". 1955.
A defesa do poeta
Senhores juízes sou um poeta
um multipétalo uivo um defeito
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto.
Sou um vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim.
Sou em código o azul de todos
(curtido couro de cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos felizes.
Senhores banqueiros sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei.
Senhores professores que pusestes
a prémio minha rara edição
de raptar-me em crianças que salvo
do incêndio da vossa lição.
Senhores tiranos que do baralho
de em pó volverdes sois os reis
dou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis.
Senhores heróis até aos dentes
puro exercício de ninguém
minha cobardia é esperar-vos
umas estrofes mais além.
Senhores três quatro cinco e sete
que medo vos pôs em ordem?
que pavor fechou o leque
da vossa diferença enquanto homem?
Senhores juízes que não molhais
a pena na tinta da natureza
não apedrejeis meu pássaro
sem que ele cante minha defesa.
Sou um instantâneo das coisas
apanhadas em delito de paixão
a raiz quadrada da flor
que espalmais em apertos de mão.
Sou uma impudência a mesa posta
de um verso onde o possa escrever.
Ó subalimentados do sonho!
A poesia é para comer.
- Natália Correia, em "Poesia completa - Natália Correia".
Natália Correia - Natália de Oliveira Correia ( 13 de setembro de 1923, Açores - 16 de março de 1993, Lisboa, Portugal). Poetisa e escritora portuguesa.