Murilo Mendes

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Amor-vida

Vivi entre os homens

Que não me viram, não me ouviram

Nem me consolaram.

Eu fui o poeta que distribui seus dons

E que não recebe coisa alguma.

Fui envolvido na tempestade do amor,

Tive que amar até antes do meu nascimento.

Amor, palavras que funda e que consome os seres.

Fogo, fogo do inferno: melhor que o céu.

- Murilo Mendes, em "Antologia Poética".



"Quero voltar para o repouso sem fim,

Para o mundo de onde saí pelo pecado,

Onde não é mais preciso sol nem lua.

Quero voltar para a mulher comum

Que abriga a todos igualmente,

Que tem os olhos vendados e descansa nas águas

eternas."

- Murilo Mendes, em "Poesia completa e prosa".



Somos todos poetas

Assisto em mim a um desdobrar de planos.

as mãos vêem, os olhos ouvem, o cérebro se move,

A luz desce das origens através dos tempos

E caminha desde já

Na frente dos meus sucessores.

Companheiro,

Eu sou tu, sou membro do teu corpo e adubo da tua alma.

Sou todos e sou um,

Sou responsável pela lepra do leproso e pela órbita vazia do cego,

Pelos gritos isolados que não entraram no coro.

Sou responsável pelas auroras que não se levantam

E pela angústia que cresce dia a dia.

- Murilo Mendes, em "A poesia em pânico".




"[...] Não considero o artesanato literário um fim em si, mas um meio de comunicação escrita. Em minha poesia procurei criar regras e leis próprias, um ritmo pessoal, operando desvios de ângulos, mas sem perder de vista a tradição. Restringir voluntariamente meu vocabulário, procurando atingir o núcleo da idéia essencial, a imagem mais direta possível, abolindo as passagens intermediárias. Certo da extraordinária riqueza da metáfora - que alguns querem até identificar com a própria linguagem -, tratei de instalá-la no poema com toda a sua carga de força.

Preocupei-me com a aproximação de elementos contrários, a aliança dos extremos, pelo que dispus muitas vezes o poema como um agente capaz de manifestar dialeticamente essa conciliação, produzindo choques pelo contato da idéia e do objeto díspares, do raro e do quotidiano.

Atraído simultaneamente pelo terrestre e o celeste, pelo animal e o espiritual, entendi que a linguagem poderia manifestar essa tendência, sob a forma dum encontro de palavras extraídas tanto da Bíblia como dos jornais; procurando mostrar que o "social" não se opõe ao "religioso"."

- Murilo Mendes, em artigo publicado no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, de 25 de julho de 1959.



Estudo nº 4

Quando se acalmará

Esta doença fértil a que chamam Vida?

Não quero soletrar o horizonte

Nem seguir o desenho da onda na areia,

Não quero conversar flores no campo idílico.

Quero antes correr correr a cortina sobre mim mesmo,

Transcender minha história

E esperar que Deus remova meu corpo.

Quero tudo, ou nada:

Todas as paixões, todos os crimes, delícias e propriedades.

Ou então mergulhar num saco vazio de cinzas,


Montar num avião de fogo, e nunca mais descer.

- Murilo Mendes, em "Antologia Poética".



Angústia e reação

Há noites intransponíveis

Há dias em que para nosso movimento em Deus.

Há tardes em que qualquer vagabunda

Parece mais alta do que a própria musa.

Há instantes em que um avião

Nos parece mais belo que um mistério de fé,

Em que uma teoria política

Tem mais realidade que o Evangelho.

Em que Jesus foge de nós, foi para o Egito:

O tempo sobrepõe-se à ideia do eterno.

É necessário morrer de tristeza e de nojo

Por viver num mundo aparentemente abandonado por Deus,

E ressuscitar pela força da prece, da poesia e do amor.

É necessário multiplicar-se em dez, em cinco mil.

É necessário chicotear os que profanam as igrejas

É necessário caminhar sobre as ondas.

- Murilo Mendes, em "Tempo e Eternidade" (livro em parceria com Jorge de Lima).



Tu

Espero-te desde o começo,

Desde o tempo das pianolas,

Desde a luz de querosene.


És meu amor triste e lúcido,

Por ti me vinguei da vida,

Matei a figura estéril

E fiz a pedra florir.


Céu e terra se tocaram

Com grande aplauso do fogo,

Ondas bravas se abraçavam

No início do nosso idílio.


Áspera e doce criatura,

És o arquétipo encarnado

Das mulheres oceânicas

E ao mesmo tempo tranqüila.


Nosso amor será uma luta:

Ao som de clarins vermelhos

Subiremos pelo arco-íris

Semimortos de paixão,

Até encontrarmos o Hóspede.

- Murilo Mendes, em "Poesia Completa e Prosa”.



Prelúdio

Iremos descobrindo paisagens modelares,

a luz cai direto sobre as casas amarelas,

o amor tomou banho.

Margearemos a lagoa de águas tranquilas,

saneada por um distinto engenheiro alemão.

Jardins comportados, gramas bem aparadas, morros polidos,

nenhum pássaro rompe a calma do ar com um grito agudo,

caminharemos devagar como pessoas do outro mundo...

Abafando a explosão de nossas almas despedaçadas.

- Murilo Mendes, em "Poemas e Bumba-Meu-Poeta".



Poema visto por fora

O espírito da poesia me arrebata

Para a região sem forma onde passo longo tempo imóvel

Num silêncio de antes da criação das coisas.

Súbito estendo o braço direito e tudo se encarna:

O esterco novo da volúpia aquece a terra,

Os peixes sobem dos porões do oceano,

As massas precipitam-se na praça pública.

Bordéis e igrejas, maternidades e cemitérios

Levantam-se no ar para o bem e para o mal.


Os diversos personagens que encerrei

Deslocam-se uns dos outros, fundam uma comunidade

Que eu presido ora triste ora alegre.


Não sou Deus porque parto para Ele,

Sou um deus porque partem para mim.

Somos todos deuses porque partimos para um fim único.

- Murilo Mendes, em "Poesia Completa e Prosa".



O homem, a luta e a eternidade

Adivinho nos planos da consciência

dois arcanjos lutando com esferas e pensamentos

mundo de planetas em fogo

vertigem

desequilíbrio de forças,

matéria em convulsão ardendo pra se definir.

Ó alma que não conhece todas as suas possibilidades,

o mundo ainda é pequeno pra te encher.

Abala as colunas da realidade,

desperta os ritmos que estão dormindo.

À guerra! Olha os arcanjos se esfacelando!


Um dia a morte devolverá meu corpo,

minha cabeça devolverá meus pensamentos ruins

meus olhos verão a luz da perfeição

e não haverá mais tempo.

- Murilo Mendes, publicado na revista "Letras e Artes".



Mapa

Me colaram no tempo, me puseram

uma alma viva e um corpo desconjuntado. Estou

limitado ao norte pelos sentidos, ao sul pelo medo,

a leste pelo Apóstolo São Paulo, a oeste pela minha educação.

Me vejo numa nebulosa, rodando sou um fluído,

depois chego à consciência da terra, ando como os outros,

me pregaram numa cruz, numa única vida.

Colégio. Indignado, me chamam pelo número, detesto a hierarquia.

Me puseram o rótulo de homem, vou rindo, vou andando, aos solavancos.

Danço. Rio e choro, estou aqui, estou ali, desarticulado,

gosto de todos, não gosto de ninguém, batalho com os espíritos do ar,

alguém da terra me faz sinais, não sei mais o que é o bem

nem o mal.

Minha cabeça voou acima da baía, estou suspenso, angustiado, no éter,

tonto de vidas, de cheiros, de movimentos, de pensamento,

não acredito em nenhuma técnica.

Estou com os meus antepassados, me balanço em arenas espanholas,

é por isso que saio às vezes pra rua combatendo personagens imaginários,

depois estou com os meus tios doidos, às gargalhadas,

na fazenda do interior, olhando os girassóis do jardim

Estou no outro lado do mundo, daqui a cem anos, levantando populações...

Me desespero porque não posso estar presente a todos os atos da vida.

Onde esconder minha cara? O mundo samba na minha cabeça.

Triângulos, estrelas, noite, mulheres andando,

presságios brotando no ar, diversos pesos e movimentos me chamam a atenção

o mundo vai mudar a cara,


a morte revelará o sentido verdadeiro das coisas.


Andarei no ar.

Estarei em todos os nascimentos e em todas as agonias,

me aninharei nos recantos do corpo da noiva,

na cabeça dos artistas doentes, dos revolucionários.

Tudo transparecerá:

vulcões de ódio, explosões de amor, outras caras aparecerão na terra,

o vento que vem da eternidade suspenderá os passos,

dançarei na luz dos relâmpagos, beijarei sete mulheres,

vibrarei nos cangerês do mar, abraçarei as almas no ar,

me insinuarei nos quatro cantos do mundo.


Almas desesperadas eu vos amo. Almas insatisfeitas, ardentes,

Detesto os que se tapeiam,

os que brincam de cabra-cega com a vida, os homens "práticos"...

Viva São Francisco e vários suicidas e amantes suicidas,

os soldados que perderam a batalha, as mães bem mães,

as fêmeas bem fêmeas, os doidos bem doidos.

Vivam os transfigurados, ou porque eram perfeitos ou porque jejuavam muito...

viva eu, que inauguro no mundo o estado de bagunça transcendente.

Sou a presa do homem que fui há vinte anos passados,

dos amores rasos que tive,

vida de planos ardentes, desertos vibrando sob os dedos do amor,

tudo é ritmo do cérebro do poeta. Não me inscrevo em nenhuma teoria,

estou no ar,

na alma dos criminosos, dos amantes desesperados,

no meu quarto modesto da praia de Botafogo,

no pensamento dos homens que movem o mundo,

nem triste nem alegre, chama com dois olhos andando,

sempre em transformação.

- Murilo Mendes, em "Poemas e Bumba-Meu-Poeta".



Estudo para um caos

O último anjo derramou seu cálice no ar.


Os sonhos caem na cabeça do homem,

As crianças são expelidas do ventre materno,

As estrelas se despregam do firmamento.

Uma tocha enorme pega fogo no fogo,

A água dos rios e dos mares jorra cadáveres.

Os vulcões vomitam cometas em furor

E as mil pernas da Grande dançarina

Fazem cair sobre a terra uma chuva de lodo.

Rachou-se o teto do mar em quatro partes:

Instintivamente eu me agarro no abismo.

Procurei meu rosto, não o achei.

Depois a treva foi ajuntada à própria treva.

- Murilo Mendes, em "As metamorfoses".



Conhecimento

A marcha das constelações me segue até no lodo.

Estendo os braços para separar os tempos

E indico ao navio de poetas o caminho do pânico.

Quem sou eu? A sombra ambulante de meus pais até o primeiro homem,

Quem sou eu? Um cérebro deixado em pasto aos bichos,

Sou a fome de mim mesmo e de todos,

Sou o alimento dos outros,

Sou o bem encarcerado e o mal que não germina.

Sou a própria esfinge que me devora.

- Murilo Mendes, em "A poesia em pânico".



Canção do Exílio

Minha terra tem macieiras da Califórnia

onde cantam gaturamos de Veneza.

Os poetas da minha terra

são pretos que vivem em torres de ametista,

os sargentos do exército são monistas, cubistas,

os filósofos são polacos vendendo a prestações.

A gente não pode dormir

com os oradores e os pernilongos.

Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda.

Eu morro sufocado

em terra estrangeira.

Nossas flores são mais bonitas

nossas frutas mais gostosas

mas custam cem mil réis a dúzia.


Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade

e ouvir um sabiá com certidão de idade!

- Murilo Mendes, em "Poesias, 1925/1955".



Amante invisível

Para que a música da maior ternura embale teus ouvidos,

Quero mandar teu nome nas flechas dos ventos

Para que outros povos te conheçam do outro lado do mar,

Quero forçar teu pensamento a pensar em mim,

Quero desenhar diante de teus olhos

O Alfa e Ômega nos teus instantes de dúvida,

Quero subir em ramagem pelas tuas pernas,

Quero me enrolar em serpente no teu pescoço,

Quero ser acariciado em pedra pelas tuas mãos,

Quero me dissolver em perfume nas tuas narinas,

Quero me transformar em ti.

- Murilo Mendes, em "A poesia em pânico".



Retrato de Murilo Mendes (estudo), por Portinari (1931)




Murilo Mendes - Murilo Monteiro Mendes ( 13 de maio de 1901, Juiz de Fora MG - 13 de agosto de 1975, Lisboa, Portugal). Poeta, escritor e crítico de artes plásticas brasileiro.