Miguel Torga

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Apesar da idade, não me … acostumar à vida. Vivê-la até ao derradeiro suspiro de credo na boca. Sempre pela primeira vez, com a mesma apetência, o mesmo espanto, a mesma aflição. Não consentir que ela se banalize nos sentidos e no entendimento. Esquecer em cada poente o do dia anterior. Saborear os frutos do quotidiano sem ter o gosto deles na memória. Nascer todas as manhãs.

(Coimbra, 25 de Maio de 1982)

-Miguel Torga, em “Diário”.



Biografia


Sonho, mas não parece.

Nem quero que pareça.

É por dentro que eu gosto que aconteça

A minha vida.

Íntima, funda, como um sentimento

De que se tem pudor.

Vulcão de exterior

Tão apagado,

Que um pastor

Possa sobre ele apascentar o gado.

Mas os versos, depois,

Frutos do sonho e dessa mesma vida,

É quase à queima-roupa que os atiro

Contra a serenidade de quem passa.

Então, já não sou eu que testemunho

A graça

Da poesia:

É ela, prisioneira,

Que, vendo a porta da prisão aberta,

Como chispa que salta da fogueira

Numa agressiva fúria se liberta.


-Miguel Torga, em “Orfeu Rebelde”, “Antologia Poética”.



Tempo


Tempo — definição da angústia.

Pudesse ao menos eu agrilhoar-te

Ao coração pulsátil dum poema!

Era o devir eterno em harmonia.

Mas foges das vogais, como a frescura

Da tinta com que escrevo.

Fica apenas a tua negra sombra:

— O passado,

Amargura maior, fotografada.

Tempo...

E não haver nada,

Ninguém,

Uma alma penada

Que estrangule a ampulheta duma vez!

Que realize o crime e a perfeição

De cortar aquele fio movediço

De areia

Que nenhum tecelão

É capaz de tecer na sua teia!


-Miguel Torga, em “Cântico do Homem”, “Antologia Poética”.



Segredo


Sei um ninho.

E o ninho tem um ovo.

E o ovo, redondinho,

Tem lá dentro um passarinho

Novo.

.

Mas escusam de me atentar:

Nem o tiro, nem o ensino.

Quero ser um bom menino

E guardar

Este segredo comigo.

E ter depois um amigo

Que faça o pino

A voar…


-Miguel Torga, em “Diário VIII”, “Antologia Poética”.



Outono


Outono.

(A palavra é cansada…)

Tudo a cair de sono,

Como se a vida fosse assim, parada!

Nem o verde inquieto duma folha!

O próprio sol, sem força e sem altura,

Olha

Dum céu sem luz e levedura.

Fria,

A cor sem nome duma vinha morta

Vem carregada de melancolia

Bater-me à porta.



-Miguel Torga, em “Poesia Completa”.



Ajuda


Porque o amor é simples,

Vale a pena colhê-lo.

Nasce em qualquer degredo,

Cria-se em qualquer chão.

Anda, não tenhas medo!

Não deixes sem amor o coração!


-Miguel Torga, em “Diário III”.



Viagem


Aparelhei o barco da ilusão

E reforcei a fé de marinheiro.

Era longe o meu sonho, e traiçoeiro

O mar...

(Só nos é concedida

Esta vida

Que temos;

E é nela que é preciso

Procurar

O velho paraíso

Que perdemos).

Prestes, larguei a vela

E disse adeus ao cais, à paz tolhida.

Desmedida,

A revolta imensidão

Transforma dia a dia a embarcação

Numa errante e alada sepultura...

Mas corto as ondas sem desanimar.

Em qualquer aventura,

O que importa é partir, não é chegar.


-Miguel Torga, em “Câmara Ardente”.



Destino


Acordo com os pássaros cativos,

Com a ária da vida nos ouvidos.

Acordo sem amarras nos sentidos,

Fiéis à sempiterna liberdade...

Nada pôde vencer a lealdade

Que juraram à deusa aventureira.

Nem as grades do sono, nem a severidade

Da noite carcereira.

Acordo e recomeço

O canto interrompido:

O desvairado canto

Da ira irrequieta...

— O canto que o poeta

Se obrigou a cantar

Antes de ter nascido,

Antes de a sua angústia começar.


-Miguel Torga, em “Câmara Ardente”.



Brinquedo


Foi um sonho que eu tive:

Era uma grande estrela de papel,

Um cordel

E um menino de bibe.

O menino tinha lançado a estrela

Com ar de quem semeia uma ilusão;

E a estrela ia subindo, azul e amarela,

Presa pelo cordel à sua mão.

Mas tão alto subiu

Que deixou de ser estrela de papel.

E o menino, ao vê la assim, sorriu

E cortou-lhe o cordel.


-Miguel Torga, em “Diário”.



Confiança


O que é bonito neste mundo, e anima,

É ver que na vindima

De cada sonho

Fica a cepa a sonhar outra aventura…

E que a doçura

Que se não prova

Se transfigura

Numa doçura

Muito mais pura

E muito mais nova…


-Miguel Torga, em “Cântico do Homem”.



Páscoa


Um dia de poemas na lembrança

(Também meus)

Que o passado inspirou.

A natureza inteira a florir

No mais prosaico verso.

Foguetes e folares,

Sinos a repicar,

E a carícia lasciva e paternal

Do sol progenitor

Da primavera.

Ah, quem pudera

Ser de novo

Um dos felizes

Desta aleluia!

Sentir no corpo a ressurreição.

O coração,

Milagre do milagre da energia,

A irradiar saúde e alegria

Em cada pulsação.


-Miguel Torga, em “Diário XVI”.



Paz


Calado ao pé de ti, depois de tudo,

Justificado

Como o instinto mandou,

Ouço, nesta mudez,

A força que te dobrou,

Serena, dizer quem és

E quem sou.


-Miguel Torga, em “Diário”.


Poema


Não tenhas medo, ouve:

É um poema

Um misto de oração e de feitiço...

Sem qualquer compromisso,

Ouve-o atentamente,

De coração lavado.

Poderás decorá-lo

E rezá-lo

Ao deitar

Ao levantar,

Ou nas restantes horas de tristeza.

Na segura certeza

De que mal não te faz.

E pode acontecer que te dê paz…


-Miguel Torga


Poema Melancólico a não sei que mulher


Dei-te os dias, as horas e os minutos

Destes anos de vida que passaram;

Nos meus versos ficaram

Imagens que são máscaras anônimas

Do teu rosto proibido;

A fome insatisfeita que senti

Era de ti,

Fome do instinto que não foi ouvido.


Agora retrocedo, leio os versos,

Conto as desilusões no rol do coração,

Recordo o pesadelo dos desejos,

Olho o deserto humano desolado,

E pergunto porquê, por que razão

Nas dunas do teu peito o vento passa

Sem tropeçar na graça

Do mais leve sinal da minha mão…


-Miguel Torga, em “Diário VII”.



Madrigal dos Cinquenta Anos


Com as mesmas palavras do passado,

Digo que te desejo, vida!

E como um namorado

Que desmede a paixão, já desmedida,

Prometo

Ser-te fiel sem esperança.

Fiel à consciente

temeridade

De amar intensamente

Sem mocidade…


-Miguel Torga, em “Diário VIII”.




“É escusado. Não posso ter outro partido senão o da Liberdade.”


-Miguel Torga





Miguel Torga (pseudônimo de Adolfo Correia Rocha) 12 de agosto de 1907, São Martinho de Anta, Sabrosa, Portugal - 17 de janeiro de 1995, Coimbra, Portugal. Médico, escritor e poeta português.