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Lêdo Ivo
Atualizado em
"O tempo não passa; ele fica. O que passa é a nossa percepção dele."
-Lêdo Ivo
"A solidão é o espelho do poeta; não a busca, mas a revelação do que está dentro de nós."
-Lêdo Ivo
O ofício de viver
Vou sempre além de mim mesmo
em teu dorso, ó verso.
O que não sou nasce em mim
e, máscara mais verdadeira
do que o rosto, toma conta
de meus símbolos terrestres.
Imaginação! teu véu
envolve humildes objetos
que na sombra resplandecem.
Vestíbulo do informulável,
poesia, és como a carne,
atrás de ti é que existes.
E as palavras são moedas.
Com elas, tudo compramos,
a árvore que nasce no espaço
e o mar que não escutamos,
formas tangíveis de um corpo
e a terra em que pisamos.
Se inventar é o meu destino,
invento e invento-me. Canto.
- Lêdo Ivo, em "Poesia Completa", 2004.
A mudança
Mudo todas as horas.
E o tempo, sem demora,
muda mais do que fia.
Mudo mas permaneço
bem longe das mudanças.
Como uma flor, floresço.
Sou pétala e esperança.
Mudo e sou sempre o mesmo,
igual a um tiro a esmo.
Como um rio que corre.
Sem sair de onde estou,
de tanto mudar sou
o que vive e o que morre.
- Lêdo Ivo, em "Plenilúnio", 2004.
O coração da liberdade
Estive, estou e estarei
no coração da realidade,
perto da mulher que dorme,
junto do homem que morre,
próximo à criança que chora.
Para que eu cante, os dias são momentâneos
e o céu é o anúncio de um pássaro.
Não me afastarei daqui,
da vida que é minha pátria,
e passa como as águias no sul
e permanece como os vulcões extintos
que um dia vomitam sono e primavera.
Minha canção é como a veia aberta
ou uma raiz central dentro da terra.
Não me afastarei daqui, não trairei jamais
o centro maduro de todos os meus dias.
Somente aqui os minutos mudam como praias
e o dia é um lugar de encontro, como as praças,
e o cristal pesa como a beleza
no chão que cheira à criação do mundo.
Adeus, hermetismo, país de mortes fingidas.
Bebo a hora que é água; refugio-me na estância
quando a aurora é mistura de orvalho e de esterco,
e estou livre, sinto-me final, definitivo
como o tempo dentro do tempo, e a luz dentro da luz
e todas as coisas que são o centro, o coração
da realidade que escorre como lágrimas.
- Lêdo Ivo, em "Linguagem", 1951.
A Queimada
Queime tudo o que puder:
as cartas de amor
as contas telefônicas
o rol de roupas sujas
as escrituras e certidões
as inconfidências dos confrades ressentidos
a confissão interrompida
o poema erótico que ratifica a impotência
e anuncia a arteriosclerose
os recortes antigos e as fotografias amareladas.
Não deixe aos herdeiros esfaimados
nenhuma herança de papel.
Seja como os lobos: more num covil
e só mostre à canalha das ruas os seus dentes afiados.
Viva e morra fechado como um caracol.
Diga sempre não à escória eletrônica.
Destrua os poemas inacabados,os rascunhos,
as variantes e os fragmentos
que provocam o orgasmo tardio dos filólogos e escoliastas.
Não deixe aos catadores do lixo literário nenhuma migalha.
Não confie a ninguém o seu segredo.
A verdade não pode ser dita.
- Lêdo Ivo, em "Poesia Completa", 2004.
As Iluminações
Desabo em ti como um bando de pássaros.
E tudo é amor, é magia, é cabala.
Teu corpo é belo como a luz da terra
na divisão perfeita do equinócio.
Soma do céu gasto entre dois hangares,
és a altura de tudo e serpenteias
no fabuloso chão esponsálício.
Muda-se a noite em dia porque existes,
feminina e total entre os meus braços,
como dois mundos gêmeos num só astro.
- Lêdo Ivo, em "Um Brasileiro em Paris e O Rei da Europa", 1955.
Canção de verão
Preciso da eternidade
como preciso do vento
que sopra sobre a cidade.
Entre o que fica e o que passa
vejo no verão sinistro
um ninho cair da árvore.
A morte ainda é lembrança:
nome inscrito numa lápide.
A morte ainda é esperança
promessa de eternidade
ventania! ventania
soprando sobre a cidade.
- Lêdo Ivo, em "Poesia Completa", 2004.
A infância redimida
A alegria, crio-a agora neste poema.
Embora seja trágica e íntima da morte
a vida é um reino - a vida é o nosso reino
não obstante o terror, o êxtase e o milagre.
Como te sonhei, Poesia! não como te sonharam...
Escondo-me no bosque da linguagem, corro em salas de espelhos.
Estou sempre ao alcance de tudo, cheio de orgulho
porque o Anjo me segue a qualquer parte.
Tenho um ritmo longo demais para louvar-te, Poesia.
Maior, porém, era a beira da praia de minha cidade
onde, menino, inventei navios antes de tê-los visto.
Maior ainda era o mar
diante do qual todas as tardes eu recitava poemas,
festejando-o com os olhos rasos d′água e às vezes sorrindo de [paixão,
porque grande coisa é descobrir-se o mar, vê-lo existir no mundo.
Ó mar de minha infância, maior que o mar de Homero.
Brinco de esconder-me de Deus, compactuo com as fadas
e com este ar de jogral mantenho querelas com a morte.
Depois do outro lado, há sempre um novo outro lado a conquistar-se...
Por isso te amo, Poesia, a ti que vens chamar-me para as califórnias da vida.
Não és senão um sonho de infância, um mar visto em palavras.
- Lêdo Ivo, em "O Sinal Semafórico", 1974.
Soneto da Conciliação
Que o amor não me iluda, como a bruma
que esconde uma imprevista segurança.
Antes, sustente o chão em que descansa
o que se irá, perdido como a espuma.
Veja que eu me elegi, mas sem nenhuma
razão de assim fazer, e sem lembrança
de aproveitar apenas a esquivança
de que o amor não prescinde em parte alguma.
Que também não se alheie ao que esclarece
o motivo real, de uma oferta,
reunir o acessório e o imprescindível.
Antes, atente a tudo o que se tece
distante do seu dia inconsumível
que dá certeza à noite mais incerta.
- Lêdo Ivo, em "Acontecimento do Soneto", 1948.
O portão
O portão fica aberto o dia inteiro
mas à noite eu mesmo vou fechá-lo.
Não espero nenhum visitante noturno
a não ser o ladrão que salta o muro dos sonhos.
A noite é tão silenciosa que me faz escutar
o nascimento dos mananciais nas florestas.
Minha cama branca como a via-láctea
é breve para mim na noite negra.
Ocupo todo o espaço da mundo. Minha mão
desatenta
derruba uma estrela e enxota um morcego.
O bater de meu coração intriga as corujas
que, nos ramos dos cedros, ruminam o enigma
do dia e da noite paridos pelas águas.
No meu sonho de pedra fico imóvel e viajo.
Sou o vento que apalpa as alcachofras
e enferruja os arreios pendurados no estábulo.
Sou a formiga que, guiada pelas constelações,
respira os perfumes da terra e do oceano.
Um homem que sonha é tudo o que não é:
o mar que os navios avariaram,
o silvo negro do trem entre fogueiras,
a mancha que escurece o tambor de querosene.
Se antes de dormir fecho o meu portão
no sonho ele se abre. E quem não veio de dia
pisando as folhas secas dos eucaliptos
vem de noite e conhece o caminho, igual aos mortos
que todavia jamais vieram, mas sabem onde estou
— coberto por uma mortalha, como todos os que
sonham
e se agitam na escuridão, e gritam as palavras
que fugiram do dicionário e foram respirar o ar da
noite que cheira a jasmim
e ao doce esterco fermentado.
os visitantes indesejáveis atravessam as portas
trancadas
e as persianas que filtram a passagem da brisa
e me rodeiam.
Ó mistério do mundo, nenhum cadeado fecha o
portão da noite.
Foi em vão que ao anoitecer pensei em dormir
sozinho
protegido pelo arame farpado que cerca as minhas
terras
e pelos meus cães que sonham de olhos abertos.
À noite, uma simples aragem destrói os muros dos
homens.
Embora o meu portão vá amanhecer fechado
sei que alguém o abriu, no silêncio da noite,
e assistiu no escuro ao meu sono inquieto.
- Lêdo Ivo, em "Poesia Completa".
A passagem do tempo
"A passagem do tempo é uma das marcas da minha poesia. Eu sou o que passa. E o símbolo deste tempo é a água que leva sempre as imagens da vida, que é fluência e renovação."
- Lêdo Ivo, 'entrevista' a Jairo Máximo/EuroLantinNews.
Quem é Lêdo Ivo?
"- É muito difícil saber isso. Você é você e você é aquilo que você pensa que é. E você é o que os outros pensam que você é. Então, você se faz com esta dupla imagem: uma real e outra imaginária. Embora ninguém saiba onde começa a realidade ou termina o imaginário. O filósofo alemão Schopenhauer (1788-1860) diz que o mundo é a representação que a pessoa tem dele. Este é o problema. Vivemos hoje numa época de incertezas. Guerras absurdas. Fome. Crises terríveis. Retrocessos. Um mundo cada vez mais kafkaniano como se a própria vida real -a vida acordada- fosse o pesadelo para milhões de pessoas. Talvez o próprio mundo em que vivamos seja hoje um mundo virtual no qual a gente não tem como sair. Esta é a minha visão. E dentro deste mundo eu não sei o que sou, nem quem sou."
- Lêdo Ivo, 'entrevista' a Jairo Máximo/EuroLantinNews.
Lêdo Ivo ( 18 de fevereiro de 1924, Maceió, Alagoas - 23 de setembro de 2012, Rio de Janeiro). Escritor, poeta e tradutor brasileiro.