We can't find the internet
Attempting to reconnect
Something went wrong!
Hang in there while we get back on track
Jacinta Passos
Atualizado em
Jacinta Passos e Janaína Amado - mãe e filha (fevereiro de 1948)
[foto Acervo da família Amado]
Eu serei poesia
A poesia está em mim mesma e para além de mim mesma.
Quando eu não for mais um indivíduo,
eu serei poesia.
Quando nada mais existir entre mim e todos os seres,
os seres mais humildes do universo,
eu serei poesia.
Meu nome não importa.
Eu não serei eu, eu serei nós,
serei poesia permanente,
poesia sem fronteiras.
- Jacinta Passos (1942), em parte I “Momentos de Poesia”, do livro 'Nossos poemas'.
Meu sonho
O meu sonho
mais risonho
é suave e pequenino
resumindo entretanto o meu destino.
É de cor azul escura
como o mar que longe chora
É cor de infinito e de ânsia
cor do céu, cor do mar, cor de distância.
Tem a leve suavidade
da saudade,
e a cantante doçura
de um regato que murmura.
Macio e encantador
é carícia de pluma e perfume de flor.
O meu sonho
mais risonho,
é para mim cada momento
o motivo maior de doce encantamento.
- Jacinta Passos, em "A Tarde".
O mar
Múrmuro e lento,
o mar ao longe se espraia.
Geme e brame, ruge e clama
o seu tormento,
e, soluçando, vem morrer na praia.
O mar imenso...
Quando eu escuto o seu rumor soturno,
fico a cismar.
Penso
no destino do mar
– ser eterno cantor –
cantar a sua dor de eterno insatisfeito,
cantar o seu sonho infinito desfeito,
cantar o mesmo canto que embalou
a infância do mundo.
O mar imenso... encarcerado
dentro dos frios limites dum traçado.
Ouço vozes estranhas... Vem do fundo
do mar ou de dentro de mim,
esse surdo clamor?
São vozes obscuras,
vozes desconhecidas,
vozes que irrompem
da parte ignorada de mim mesma.
Por que esta sede imensa de saber,
desvendar os segredos escondidos,
despir as coisas
de suas transitórias aparências,
penetrar no seu âmago,
ver a essência do ser?
Pobre desejo humano esbarra, mudo,
ante o mistério de tudo.
Por que este desejar que não se cansa,
por que este destino errante de correr
sempre atrás dum bem que não se alcança?
Anseio de sentir-se um instante feliz,
anseio de eternizar esse instante que passa,
perdendo-se no passado, no infinito do tempo,
como se perde um pouco de fumaça
na amplidão dos espaços infinitos...
Por que este desejar que não tem fim,
se o mísero coração
sabe que nenhum bem lhe satisfaz?
Foge o minuto fugaz
e no fundo de toda ventura sorvida
há um gosto de cinza.
Perguntas sem resposta, atiradas à toa,
inutilmente...
Ouço vozes estranhas... Vem do fundo
do mar ou de dentro de mim
esse surdo clamor?
São vozes de sofrimento, de amarguras,
vozes de todas as criaturas
que falam por minha voz.
Todas as criaturas que sofreram
esta ânsia indefinida
– angústia milenária como a vida –
de querer atingir o inatingível.
Vozes de todos que sentiram, vivo,
cruel, o trágico destino humano
de pássaro cativo:
– ter diante de si o vasto céu azul,
luminoso e ardente,
ter asas, asas para bem alto subir,
e sentir
que não pode voar,
impotente... impotente...
- Jacinta Passos (1935), em parte I “Momentos de Poesia”, do livro 'Nossos poemas'.
Incerteza
Em meu olhar se espelha
a sombra interior de incerteza angustiante.
E em minha alma floresce, como rosa vermelha
dum vermelho gritante,
como o clangor clarim,
esta angústia que vive a vibrar dentro em mim.
É a minha vida um longo e ansioso esperar,
num amor que há de vir.
Amor - prazer que é dor e sofrer que é gozar -
Amor que tudo dá sem nada nos pedir,
e que, às vezes, num rápido segundo,
resume a glória toda e toda a ânsia do mundo.
Mas depois deste amor, o que virá? O tédio
insípido e tristonho,
desenganos sem cura e dores sem remédio.
Com a posse dum bem, o desfolhar dum sonho...
Vale mais, muito mais,
desejar sempre um bem, sem possui-lo jamais.
Oh! não. O coração
não se cansa de amar se sabe querer bem.
- Ter para o erro o perdão,
renunciar a si mesmo e viver para alguém -
E se um motivo qualquer,
imperioso e fatal, o sonho desfizer?
Então eu saberei bendizer, comovida,
o amor que já passou,
deixando uma doçura amarga em minha vida.
Quando o sonho murchar,
a esperança está finda,
mas dentro d'alma, fica uma saudade linda.
- Jacinta Passos (1934) , em "O Malho".
Crepúsculo
Vai lentamente agonizando o dia...
O poente onde, há pouco, o sol ardia,
se tingiu de cor de ouro, luminosa.
Tons desmaiados de lilás e rosa
listram o puro azul do firmamento
– um poema de luz, neste momento.
A sombra de mansinho vem caindo
e o contorno das coisas, diluindo.
Pesa um grande silêncio, enorme e mudo.
Desce suavemente sobre tudo,
uma bênção dulcíssima de paz.
A treva escura que vem vindo traz
uma saudade vaga, indefinida...
saudade do que já passou na vida,
saudade mansa, boa, imensa e triste,
saudade até dum bem que não existe,
nostalgia sem fim da perfeição
que, nessa hora, invade o coração.
A alma das coisas que vagava a esmo
parece ir recolhendo-se em si mesma,
pondo-se então a meditar consigo.
A silhueta de um convento antigo
ergue-se negra, austera e secular,
banhada em doce luz crepuscular,
no fundo luminoso do poente.
É a longa torre uma oração silente.
Parece uma blasfêmia, o negro véu
de fumaça manchando o ouro do céu.
O silêncio, de súbito, estremece
e pelo ar passa um frêmito de prece.
Vibrou a alma sonora da paisagem
e o canto vem tangido pela aragem.
Quando, do sino, a voz forte badala,
Todo o rumor em derredor se cala
e escuta a voz que soa, alta e vibrante,
na quietude da tarde agonizante.
- Jacinta (1935), em parte I “Momentos de Poesia”, do livro 'Nossos poemas'.
Canção do amor livre
Se me quiseres amar
não despe somente a roupa.
Eu digo: também a crosta
feita de escamas de pedra
e limo dentro de ti,
pelo sangue recebida
tecida
de medo e ganância má.
Ar de pântano diário
nos pulmões.
Raiz de gestos legais
e limbo do homem só
numa ilha.
Eu digo: também a crosta
essa que a classe gerou
vil, tirânica, escamenta.
Se me quiseres amar.
Agora teu corpo é fruto.
Peixe e pássaro, cabelos
de fogo e cobre. Madeira
e água deslizante, fuga
ai rija
cintura de potro bravo.
Teu corpo.
Relâmpago depois repouso
sem memória, noturno.
- Jacinta Passos, em "Poemas políticos".
Jacinta Passos - 30 de novembro de 1914, Cruz das Almas, Bahia - 28 de fevereiro de 1973. Escritora e poetisa brasileira.