Hilda Hilst

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De montanhas e barcas nada sei.

Mas sei a trajetória de uma altura

E certa fundura de águas

E há de me levar a ti uma das duas.

De ares e asas não percebo nada.

Mas atravesso abismos e um vazio de avessos

Para tocar a luz do teu começo.

Das pedras só conheço as ágatas.

Mas arranco do xisto as esmeraldas

Se me disseres que é o verde a dádiva

Que responde as perguntas da Ilusão.

E posso me ferir no gelo das espadas

Se me quiseres banhada de vermelho.


Em minhas muitas vidas hei de te perseguir.

Em sucessivas mortes hei de chamar este teu ser sem nome

Ainda que por fadiga ou plenitude, destruas o poeta

Destruindo o Homem.

- Hilda Hilst, em "Sobre a tua grande face", 1986.



Cantares do sem-nome e de partidas

V

O Nunca Mais não é verdade.

Há ilusões e assomos, há repentes

De perpetuar a Duração.

O Nunca Mais é só meia-verdade:

Como se visses a ave entre a folhagem

E ao mesmo tampo não

(E antevisses

Contentamento e morte na paisagem).


O Nunca Mais é de planícies e fendas.

É de abismos e arroios.

É de perpetuidade no que pensas efêmero

E breve e pequenino

No que sentes eterno.


Nem é corvo ou poema o Nunca Mais.

- Hilda Hilst



Não há silêncio bastante

Não há silêncio bastante

Para o meu silêncio.

Nas prisões e nos conventos

Nas igrejas e na noite

Não há silêncio bastante

Para o meu silêncio.


Os amantes no quarto.

Os ratos no muro.

A menina

Nos longos corredores do colégio.

Todos os cães perdidos

Pelos quais tenho sofrido:

O meu silêncio é maior

Que toda solidão

E que todo o silêncio.

- Hilda Hilst, em "Poesia: 1959-1979/Hilda Hilst".



Quisera dar nomes

Quisera dar nomes, muitos, a isso de mim

Chagoso, triste, informe. Uns resíduos da tarde

Algumas aves, e asas buscando tua cara de fuligem.

De áspide.

Quisera dar o nome de Roxura, porque a ânsia

Tem parecimento com esse desmesurado de mim

Que te procura. Mas também não é isso

Este meu neblinar contínuo que te busca.

Ando em grandes vaguezas, açoitando os ares

Relinchando sombras, carreando o nada.

Os que me vêem me gritam: como tem passado

A aldeã de sua alteza? E há chacotas e risos.

Mas vem vindo de ti um entremuro de sons e de cicios

Um labiar de sabores, um sem nome de passos

Como se águas pequenas desaguassem

Num pomar de abios. Como se eu mesma

Flutuasse, cativa, ofélica, sobre a tua Grande Face.

- Hilda Hilst, em “Sobre a tua grande face", 1986.



Como se te perdesse, assim te quero

Como se te perdesse, assim te quero

Como se não te visse (favas douradas

Sob um amarelo) assim te apreendo brusco

Inamovível, e te respiro inteiro


Um arco-íris de ar em águas profundas.


Como se tudo o mais me permitisses,

A mim me fotografo nuns portões de ferro

Ocres, altos, e eu mesma diluída e mínima

No dissoluto de toda despedida.


Como se te perdesse nos trens, nas estações

Ou contornando um círculo de águas

Removente ave, assim te somo a mim:

De redes e de anseios inundada.

- Hilda Hilst, em "Do Amor".



Que canto há de cantar o que perdura

(trecho selecionado)


Que canto há de cantar o que perdura?

A sombra, o sonho, o labirinto, o caos

A vertigem de ser, a asa, o grito.

Que mitos, meu amor, entre os lençóis:

O que tu pensas gozo é tão finito

E o que pensas amor é muito mais.

Como cobrir-te de pássaros e plumas

E ao mesmo tempo te dizer adeus

Porque imperfeito és carne e perecível


E o que eu desejo é luz e imaterial.


Que canto há de cantar o indefinível?

O toque sem tocar, o olhar sem ver

A alma, amor, entrelaçada dos indescritíveis.

Como te amar, sem nunca merecer?

- Hilda Hilst, em "Da noite", 1992.



Hoje te canto

Hoje te canto e depois no pó que hei de ser

Te cantarei de novo. E tantas vidas terei

Quantas me darás para o meu outra vez amanhecer

Tentando te buscar. Porque vives de mim, Sem Nome,

Sutilíssimo amado, relincho do infinito, e vivo

Porque sei de ti a tua fome, tua noite de ferrugem

Teu pasto que é o meu verso orvalhado de tintas

E de um verde negro teu casco e os areais

Onde me pisas fundo. Hoje te canto

E depois emudeço se te alcanço. E juntos

Vamos tingir o espaço. De luzes. De sangue.

De escarlate.

- Hilda Hilst, em "Sobre a tua grande face", 1986.



O poeta inventa viagem, retorno

E morre de saudade

II

Meu medo, meu temor, é se disseres:

Teu verso é raro, mas inoportuno.

Como se um punhado de cerejas

A ti te fosse dado

Logo depois de haveres engolido

Um punhado maior de framboesas.


E dirias que sim, que tu me lembras.

Mas que a lembrança das coisas, das amigas

É cotidiana em ti. Que não te enganas,

Que o amor do poeta é coisa vã.


Continuarias: há o trabalho, a casa

E fidalguias

Que serão para sempre preservadas.

Se és poeta, entendes. Casa é ilha.

E o teu amor é sempre travessia.

Meu medo, meu terror, será maior

Se eu a mim mesma me disser:

Preparo-me em silêncio. Em desamor.

E hoje mesmo começo a envelhecer.

- Hilda Hilst



"Atada a múltiplas cordas

Vou caminhando tuas costas.

Palmas feridas, vou contornando

Pontas de gelo, luzes de espinho

E degredo, tuas omoplatas.

Busco tua boca de veios

Adentro-me nas emboscadas

Vazia te busco os meios.

Te fechas, teia de sombras

Meu Deus, te guardas.

A quem te procura, calas.

A mim que pergunto, escondes

Tua casa e tuas estradas.

Depois trituras. Corpo de amantes

E amadas.

E buscas

A quem nunca te procura".

- Hilda Hilst, em “Poemas Malditos, Gozosos e Devotos”, 1984.



Do amor contente e muito descontente

Tenho pedido a todos que descansem

De tudo o que cansa e mortifica:

O amor, a fome, o átomo, o câncer.

Tudo vem a tempo no seu tempo.

Tenho pedido às crianças mais sossego

Menos riso e muita compreensão para o brinquedo

O navio não é trem, o gato não é guizo.


Quero sentar-me e ler nesta noite calada.

A primeira vez que li Franz Kafka

Eu era uma menina. (A família chorava).

Quero sentar-me e ler mas o amigo me diz:

O mundo não comporta tanta gente infeliz.


Ah, como cansa querer ser marginal

Todos os dias.

Descansem anjos meus. Tudo vem tempo

No seu tempo. Também é bom ser simples.

É bom ter nada. Dormir sem desejar,

Não ser poeta. Ser mãe. Se não puder ser pai.

Tenho pedido a todos que descansem

De tudo o que cansa e mortifica.

Mas o homem não cansa.

- Hilda Hilst



Amavisse

Carrega-me contigo, Pássaro-Poesia

Quando cruzares o Amanhã, a luz, o impossível

Porque de barro e palha tem sido esta viagem

Que faço a sós comigo. Isenta de traçado

Ou de complicada geografia, sem nenhuma bagagem

Hei de levar apenas a vertigem e a fé:

Para teu corpo de luz, dois fardos breves.

Deixarei palavras e cantigas. E movediças

Embaçadas vias de Ilusão.

Não cantei cotidianos. Só cantei a ti

Pássaro-Poesia

E a paisagem-limite: o fosso, o extremo

A convulsão do Homem.


Carrega-me contigo.

No Amanhã.

- Hilda Hilst



"A vida foi isso de sentir o corpo, contorno, vísceras, respirar, ver, mas nunca compreender. Por isso é que me recusava muitas vezes. queria o fio lá de cima, o tenso que o OUTRO segura, o OUTRO, entendes?"

- Hilda Hilst, em "a obscena senhora D".


&



Vi as éguas da noite galopando entre as vinhas

E buscando meus sonhos. Eram soberbas, altas.

Algumas tinham manchas azuladas

E o dorso reluzia igual à noite

E as manhãs morriam

Debaixo de suas patas encarnadas.


Vi-as sorvendo as uvas que pendiam

E os beiços eram negros orvalhados.

Uníssonas, resfolegavam.


Vi as éguas da noite entre os escombros

Da paisagem que fui. Vi sombras, elfos e ciladas.

Laços de pedra e palha entre as alfombras

E vasto, um poço engolindo meu nome e meu retrato.


Vi-as tumultuadas. Intensas.

E numa delas, insone, a mim me vi.

-Hilda Hilst, em “Do Desejo”.



&



Se te pareço noturna e imperfeita

Olha-me de novo. Porque esta noite

Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.

E era como se a água

Desejasse


Escapar de sua casa que é o rio

E deslizando apenas, nem tocar a margem.


Te olhei. E há tanto tempo

Entendo que sou terra. Há tento tempo

Espero

Que o teu corpo de água mais fraterno

Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta


Olha-me de novo. Com menos altivez.

E mais atento.

-Hilda Hilst, em “Da Poesia”.





Hilda Hilst (21 de abril de 1930, Jaú SP - 04 de fevereiro de 2004, Campinas SP).

Poetisa, escritora e dramaturga brasileira.