Henriqueta Lisboa

Publicado em
Atualizado em



O tempo é um fio

O tempo é um fio

bastante frágil

Um fio fino

que à toa escapa.


O tempo é um fio.

Tecei! Tecei!

Rendas de bilro

com gentileza.


Com mais empenho

franças espessas.

Malhas e redes

com mais astúcia.


O tempo é um fio

que vale muito.


Franças espessas

carregam frutos.

Malhas e redes

apanham peixes.


O tempo é um fio

por entre os dedos.

Escapa o fio,

perdeu-se o tempo.


Lá vai o tempo

como um farrapo

jogado à toa.


Mas ainda é tempo!


Soltai os potros

aos quatro ventos,

mandai os servos

de um pólo a outro,

vencei escarpas,

voltai com o tempo

que já se foi!...

- Henriqueta Lisboa, em "Antologia Poética Nestlé".




Os lírios

Certa madrugada fria

irei de cabelos soltos

ver como crescem os lírios.


Quero saber como crescem

simples e belos — perfeitos! —

ao abandono dos campos.


Antes que o sol apareça

neblina rompe neblina

com vestes brancas, irei.


Irei no maior sigilo

para que ninguém perceba

contendo a respiração.


Sobre a terra muito fria

dobrando meus frios joelhos

farei perguntas à terra.


Depois de ouvir-lhe o segredo

deitada por entre os lírios

adormecerei tranqüila.

- Henriqueta Lisboa, em "A face lívida", 1945.



É estranho

É estranho que, após o pranto

vertido em rios sobre os mares,

venha pousar-te no ombro

o pássaro das ilhas, ó náufrago.


É estranho que, depois das trevas

semeadas por sobre as valas,

teus sentidos se adelgacem

diante das clareiras, ó cego.


É estranho que, depois de morto,

rompidos os esteios da alma

e descaminhado o corpo,

homem, tenhas reino mais alto.

- Henriqueta Lisboa, em "Flor da morte", 1949.



Restauradora

A morte é limpa.

Cruel mas limpa.


Com seus aventais de linho

— fâmula — esfrega as vidraças.


Tem punhos ágeis e esponjas.

Abre as janelas, o ar precipita-se

inaugural para dentro das salas.

Havia impressões digitais nos móveis,

grãos de poeira no interstício das fechaduras.


Porém tudo voltou a ser como antes da carne

e sua desordem.

- Henriqueta Lisboa, em "Flor da morte", 1949.



As coleções

Em primeiro lugar as magnólias.

com seus cálices

e corolas: aquarela

de todas as tonalidades e suma

delicadeza de toque.

Pequena aurora diluída

com doçura – nos tanques.

Depois a música: frêmito

e susto de pássaro.

As valsas – que sorrateiras. E as flautas.

As noites com flauta sob a janela

inaugurando a lua nascida

para o suspirado amor.

Mais tarde os campos, as grutas,

a maravilha. E o caos.

Com seus favos e suas hidras,

o mundo. O mar com seus apelos,

horizontes para o éter,

desespero em mergulho.

Com o tempo, o ocaso. As lentas

plumas, os reposteiros

com seus moucos ouvidos,

a tíbia madeira para

o resguardo das cinzas,

as entabulações – e com que recuos – da paz.

Finalmente os endurecidos espelhos,

os cristais sob o quebra-luz,

dos ângulos o verniz,

o ouro com parcimônia, a prata,

o marfim com seus esqueletos.

- Henriqueta Lisboa, em "Flor da morte", 1985.



Ó noite

Ó noite, ensina-me

o teu magno

segredo:

iluminar da sombra.

Da sombra

permitir

a visão mais profunda.

Projetar pela sombra

o roteiro dos astros.

Quanto mais te recolhes,

ó noite, nos teus véus,

tanto mais fulgem

as constelações.

Serás acaso humilde,

generosa,

ou apenas criadora

de beleza?

Ó noite, ensina-me

o teu magno

segredo.

- Henriqueta Lisboa, in "Azul profundo", 1985.



Serena

Essa ternura grave

que me ensina a sofrer

em silêncio, na suavidade

do entardecer,

menos que pluma de ave

pesa sobre meu ser.


E só assim, na levitação

da hora alta e fria,

porque a noite me leve,

sorvo, pura, a alegria,

que outrora, por mais breve,

de emoção me feria.

- Henriqueta Lisboa, em "Azul profundo", 1956.



Noturno

Meu pensamento em febre

é uma lâmpada acesa

a incendiar a noite.


Meus desejos irrequietos,

à hora em que não há socorro,


dançam livres como libélulas

em redor do fogo.

- Henriqueta Lisboa, em "Prisioneiro da noite", 1941.



Henriqueta Lisboa com suas irmãs: Alaíde, Henriqueta, Abigail e Maria

(1925). Fonte: AHL/AEM/CELC/UFMG




Infância

E volta sempre a infância

com suas íntimas, fundas amarguras.

Oh! por que não esquecer

as amarguras

e somente lembrar o que foi suave

ao nosso coração de seis anos?


A misteriosa infância

ficou naquele quarto em desordem,

nos soluços de nossa mãe

junto ao leito onde arqueja uma criança;


nos sobrecenhos de nosso pai

examinando o termômetro: a febre subiu;

e no beijo de despedida à irmãzinha

à hora mais fria da madrugada.


A infância melancólica

ficou naqueles longos dias iguais,

a olhar o rio no quintal horas inteiras,

a ouvir o gemido dos bambus verde-negros

em luta sempre contra as ventanias!


A infância inquieta

ficou no medo da noite

quando a lamparina vacilava mortiça

e ao derredor tudo crescia escuro, escuro...


A menininha ríspida

nunca disse a ninguém que tinha medo,

porém Deus sabe como seu coração batia no escuro,

Deus sabe como seu coração ficou para sempre diante da vida

— batendo, batendo assombrado!

- Henriqueta Lisboa, em "Prisioneiro da noite", 1941.



“Força é reconhecer: nenhum poeta sobrevive se se distancia do tempo em que vive. O que se alienar trairá seu coração e sua consciência. Mesmo sem alusão direta a circunstâncias, o poeta se acusa como ser comunitário.”

- Henriqueta Lisboa, em "Vivência poética".



“[...] tenho visado, de modo pertinaz e intensivo, a essência do ser, a substância do que é vital, a ansiedade da criatura em busca da perfeição e do infinito, os mistérios da natureza, o próprio mistério do processo poético, o relacionamento entre a alma e Deus, a caminhada da alma à procura de Deus."

- Henriqueta Lisboa, em “Casa de pedra: poemas escolhidos”.






Henriqueta Lisboa (15 de julho 1901, Lambari MG, 09 de outubro de 1985, Belo Horizonte MG). Poetisa, tradutora e ensaísta brasileira.