Gilka Machado

Publicado em
Atualizado em




"Sonhei ser útil à humanidade. Não consegui, mas fiz versos. Estou convicta de que a poesia é tão indispensável à existência como a água, o ar, a luz, a crença, o pão e o amor."

- Gilka Machado, em 'Nota autobiográfica', no livro "Poesias completas".



Ser Mulher ...

Ser mulher, vir à luz trazendo a alma talhada

para os gozos da vida; a liberdade e o amor;

tentar da glória a etérea e altívola escalada,

na eterna aspiração de um sonho superior...


Ser mulher, desejar outra alma pura e alada

para poder, com ela, o infinito transpor;

sentir a vida triste, insípida, isolada,

buscar um companheiro e encontrar um senhor...


Ser mulher, calcular todo o infinito curto

para a larga expansão do desejado surto,

no ascenso espiritual aos perfeitos ideais...


Ser mulher, e, oh! atroz, tantálica tristeza!

ficar na vida qual uma águia inerte, presa

nos pesados grilhões dos preceitos sociais!

- Gilka Machado, no livro "Crystaes Partidos: poesias". Revista dos Tribunaes, 1915.



Reflexão

Há certas almas

como as borboletas,

cuja fragilidade de asas

não resiste ao mais leve contato,

que deixam ficar pedaços

pelos dedos que as tocam.


Em seu vôo de ideal,

deslumbram olhos,

atraem as vistas:

perseguem-nas,

alcançam-nas,

detêm-nas,

mas, quase sempre,

por saciedade

ou piedade,

libertam-nas outra vez.


Elas, porém, não voam como dantes,

ficam vazias de si mesmas,

cheias de desalento...


Almas e borboletas,

não fosse a tentação das cousas rasas;

- o amor de néctar,

- o néctar do amor,

e pairaríamos nos cimos

seduzindo do alto,

admirando de longe!...

- Gilka Machado, no livro "Sublimação".



Analogia

Sempre que o frio chega o meu pesar sorri,

pois te adoro no Inverno e adoro o Inverno em ti...”


Amo o Inverno assim triste, assim sombrio,

lembrando alguém que já não sabe amar;

e sempre, quando o sinto e quando o espio,

julgo-te eterizado, esparso no ar.


Afoita, a alma do Inverno desafio,

para inda te querer e te pensar…

para gozá-lo e gozar-te, que arrepio!…

que semelhança em ambos singular!…


Loucura pertinaz do meu anelo:

— emprestar-te, emprestar-lhe uma emoção,

— pelo mal de perder-te querer tê-lo…


Amor! Inverno! Minha aspiração!

quem me dera resfriar-me no teu gelo!

quem me dera aquecer-te em meu Verão! …

- Gilka Machado, no livro "Mulher Nua", 1922.



Saudades

De quem é esta saudade

que meus silêncios invade,

que de tão longe me vem?


De quem é esta saudade,

de quem?


Aquelas mãos só carícias,

Aqueles olhos de apelo,

aqueles lábios-desejo...


E estes dedos engelhados,

e este olhar de vã procura,

e esta boca sem um beijo...


De quem é esta saudade

que sinto quando me vejo.

- Gilka Machado, no livro "Velha poesia".



O mundo necessita de poesia...

O mundo necessita de poesia,

cantemos, poetas, para a humanidade;

que nossa voz suba aos arranha-céus,

e desça aos subterrâneos,

acompanhando ricos e pobres

nos atropelos

das carreiras

de ambição

e na luta pelo pão!


Lavemo-nos das máscaras histriônicas,

tenhamos a coragem

de propalar a existência eterna

do sentimento;

ponhamos termo

a esses malabarismos

de palhaços

falsos

da modernidade,

permanecendo diferentes,

diante da multidão

insensibilizada,

enferma.


A humanidade quer rir de tudo,

porém é alvar sua gargalhada;

foge das tristezas,

mas paira ausente

em meio aos prazeres,

desligada em toda parte,

perdida em si mesma.


O homem anda esquecido

do caminho da fé

que a poesia sempre lhe ensinou.

O homem está inquieto

porque lhe falta a posse das distâncias

que só a poesia proporciona.

O homem se sente miserável

porque a poesia já não lhe enche a alma

daquele ouro inesgotável

do sonho.


O mundo necessita de poesia,

(não importem assuadas)

cantemos alto, poetas, cantemos!

Que seja nossa voz

um sino de cristal,

um sino-guia de perdidos rumos,

vibrando do nevoeiro da inconsciência

do momento angustioso!


Nosso destino, poetas, é o destino

das cigarras e dos pássaros:

- cantar diante da vida,

cantar

para animar o labor do Universo,

cantar para acordar

ideias e emoções;

porque no nosso canto

há um trigo louro,

um pão estranho que impulsiona

o braço humano,

e os cérebros orienta,

uma hóstia

em que os espíritos encontram,

na comunhão da beleza,

a sublimação da existência.

O mundo necessita de poesia,

cantemos alto, poetas, cantemos!

-Gilka Machado, em "Sublimação", no livro "Poesias completas".






Gilka Machado (12 de março de 1893, Rio de Janeiro - 11 de dezembro de 1980, Rio de Janeiro). Poetisa brasileira.