Florbela Espanca

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"Há uma primavera em cada vida

é preciso cantá-la assim florida."

- Florbela Espanca, em "Charneca em flor: sonetos".


Eu

Eu sou a que no mundo anda perdida,

Eu sou a que na vida não tem norte,

Sou a irmã do sonho, e desta sorte

Sou a crucificada... a dolorida...


Sombra de névoa ténue e esvaecida,

E que o destino amargo, triste e forte,

Impele brutalmente para a morte!

Alma de luto sempre incompreendida! ...


Sou aquela que passa a ninguém vê...

Sou a que chamam triste sem o ser...

Sou a que chora sem saber porquê...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,

Alguém que veio ao mundo pra me ver

E que nunca na vida me encontrou!

- Florbela Espanca, do “Livro de Mágoas”, “Sonetos".



Ser poeta

Ser Poeta é ser mais alto, é ser maior

Do que os homens! Morder como quem beija!

É ser mendigo e dar como quem seja

Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!


É ter de mil desejos o esplendor

E não saber sequer que se deseja!

É ter cá dentro um astro que flameja,

É ter garras e asas de condor!


É ter fome, é ter sede de Infinito!

Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...

É condensar o mundo num só grito!


E é amar-te, assim, perdidamente...

É seres alma e sangue e vida em mim

E dizê-lo cantando a toda gente!

- Florbela Espanca, em “Charneca em flor” (1931).



Amar!

Eu quero amar, amar perdidamente!

Amar só por amar: Aqui... além...

Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...

Amar! Amar! E não amar ninguém!


Recordar? Esquecer? Indiferente!...

Prender ou desprender? É mal? É bem?

Quem disser que se pode amar alguém

Durante a vida inteira é porque mente!


Há uma Primavera em cada vida:

É preciso cantá-la assim florida,

Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!


E se um dia hei de ser pó, cinza e nada

Que seja a minha noite uma alvorada,

Que me saiba perder... pra me encontrar...

- Florbela Espanca, em “Charneca em flor” (1931).




Anseios

À minha Júlia

Meu doido coração aonde vais,

No teu imenso anseio de liberdade?

Toma cautela com a realidade;

Meu pobre coração olha cais!


Deixa-te estar quietinho! Não amais

A doce quietação da soledade?

Tuas lindas quimeras irreais

Não valem o prazer duma saudade!


Tu chamas ao meu seio, negra prisão!...

Ai, vê lá bem, ó doido coração,

Não te deslumbre o brilho do luar!


Não ´stendas tuas asas para o longe...

Deixa-te estar quietinho, triste monge,

Na paz da tua cela, a soluçar! ...

- Florbela Espanca, "A mensageira das violetas".



Sonhando

É noite pura e linda. Abro a minha janela

E olho suspirando o infinito céu,

Fico a sonhar de leve em muita coisa bela

Fico a pensar em ti e neste amor que é teu!


D'olhos fechados sonho. A noite é uma elegia

Cantando brandamente um sonho todo d'alma

E enquanto a lua branca o linho bom desfia

Eu sinto almas passar na noite linda e calma.


Lá vem a tua agora... Numa carreira louca

Tão perto que passou, tão perto à minha boca

Nessa carreira doida, estranha e caprichosa


Que a minh'alma cativa estremece, esvoaça

Para seguir a tua, como a folha de rosa

Segue a brisa que a beija... e a tua alma passa! ...

- Florbela, em “O livro D'ele” (1915-1917).



Impossível

Disseram-me hoje, assim, ao ver-me triste:

“Parece Sexta-Feira de Paixão.

Sempre a cismar, cismar de olhos no chão,

Sempre a pensar na dor que não existe ...


O que é que tem?! Tão nova e sempre triste!

Faça por estar contente! Pois então?! ...”

Quando se sofre, o que se diz é vão ...

Meu coração, tudo, calado, ouviste ...


Os meus males ninguém os adivinha ...

A minha Dor não fala, anda sozinha ...

Dissesse ela o que sente! Ai quem me dera! ...


Os males de Anto toda a gente os sabe!

Os meus ... ninguém ... A minha Dor não cabe

Nos cem milhões de versos que eu fizera! ...

- Florbela Espanca, do “Livro de Mágoas”, “Sonetos”.



Vaidade

Sonho que sou a Poetisa eleita,

Aquela que diz tudo e tudo sabe,

Que tem a inspiração pura e perfeita,

Que reúne num verso a imensidade!


Sonho que um verso meu tem claridade

Para encher todo o mundo! E que deleita

Mesmo aqueles que morrem de saudade!

Mesmo os de alma profunda e insatisfeita!


Sonho que sou Alguém cá neste mundo...

Aquela de saber vasto e profundo,

Aos pés de quem a terra anda curvada!


E quando mais no céu eu vou sonhando,

E quando mais no alto ando voando,

Acordo do meu sonho...


E não sou nada! ...

- Florbela Espanca, do livro "Sonetos".



Fanatismo

Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida.

Meus olhos andam cegos de te ver!

Não és sequer razão do meu viver,

Pois que tu és já toda a minha vida!


Não vejo nada assim enlouquecida...

Passo no mundo, meu Amor, a ler

No misterioso livro do teu ser

A mesma história tantas vezes lida!


“Tudo no mundo é frágil, tudo passa... ”

Quando me dizem isto, toda a graça

Duma boca divina fala em mim!

E, olhos postos em ti, digo de rastros:

“Ah! Podem voar mundos, morrer astros,

Que tu és como Deus: Princípio e Fim! ... ”

- Florbela Espanca, em “O livro de Sóror Saudade” (1923).



O que alguém disse

"Refugia-te na Arte" diz-me Alguém

"Eleva-te num vôo espiritual,

Esquece o teu amor, ri do teu mal,

Olhando-te a ti própria com desdém.


Só é grande e perfeito o que nos vem

Do que em nós é Divino e imortal!

Cega de luz e tonta de ideal

Busca em ti a Verdade e em mais ninguém!"


No poente doirado como a chama

Estas palavras morrem... E n'Aquele

Que é triste, como eu, fico a pensar...


O poente tem alma: sente e ama!

E, porque o sol é cor dos olhos d'Ele,

Eu fico olhando o sol, a soluçar ...

- Florbela Espanca, em “O livro de Sóror Saudade" (1923).



"Ai as almas dos poetas

Não as entende ninguém;

São almas de violetas

Que são poetas também."

- Florbela Espanca, do poema "Poetas".





Florbela Espanca, Florbela d'Alma da Conceição Espanca (08 de dezembro 1894, Vila Viçosa /Alentejo, Portugal - 08 de dezembro de 1930, Matosinhos, Portugal). Poetisa portuguesa.