Ferreira Gullar

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"Eu não quero ter razão, eu quero é ser feliz."

- Ferreira Gullar



"Quando o poema chega, é um acontecimento inusitado, uma erupção, como um vulcão. Está tudo bem e de repente ele começa a colocar fogo pela boca."

- Ferreira Gullar, na revista Cult, nº 3, out./1997.



Traduzir-se

Uma parte de mim é todo mundo:

outra parte é ninguém:

fundo sem fundo.


Uma parte de mim é multidão:

outra parte estranheza e solidão.


Uma parte de mim

pesa, pondera:

outra parte

delira.


Uma parte de mim

almoça e janta:

outra parte

se espanta.


Uma parte de mim

é permanente:

outra parte

se sabe de repente.


Uma parte de mim

é só vertigem:

outra parte,

linguagem.


Traduzir uma parte na outra parte

— que é uma questão

de vida ou morte —

será arte?

- Ferreira Gullar, em "Na vertigem do dia", 1980.



Homem Comum

Sou um homem comum

de carne e de memória

de osso e esquecimento.

e a vida sopra dentro de mim

pânica

feito a chama de um maçarico

e pode

subitamente

cessar.


Sou como você

feito de coisas lembradas

e esquecidas

rostos e

mãos, o quarda-sol vermelho ao meio-dia

em Pastos-Bons

defuntas alegrias flores passarinhos

facho de tarde luminosa

nomes que já nem sei

bandejas bandeiras bananeiras

tudo

misturado

essa lenha perfumada

que se acende

e me faz caminhar

Sou um homem comum

brasileiro, maior, casado, reservista,

e não vejo na vida, amigo,

nenhum sentido, senão

lutarmos juntos por um mundo melhor.

Poeta fui de rápido destino.

Mas a poesia é rara e não comove

nem move o pau-de-arara.

Quero, por isso, falar com você,

de homem para homem,

apoiar-me em você

oferecer-lhe o meu braço

que o tempo é pouco

e o latifúndio está aí, matando.


Que o tempo é pouco

e aí estão o Chase Bank,

a IT & T, a Bond and Share,

a Wilson, a Hanna, a Anderson Clayton,

e sabe-se lá quantos outros

braços do polvo a nos sugar a vida

e a bolsa

Homem comum, igual

a você,

cruzo a Avenida sob a pressão do imperialismo.

A sombra do latifúndio

mancha a paisagem

turva as águas do mar

e a infância nos volta

à boca, amarga,

suja de lama e de fome.


Mas somos muitos milhões de homens

comuns

e podemos formar uma muralha

com nossos corpos de sonho e margaridas.

- Ferreira Gullar (Brasília 1963), em "Toda poesia", 1980.



Poema obsceno

Façam a festa

cantem e dancem

que eu faço o poema duro

o poema-murro

sujo

como a miséria brasileira


Não se detenham:

façam a festa

Bethânia Martinho

Clementina

Estação Primeira de Mangueira Salgueiro

gente de Vila Isabel e Madureira

todos

façam

a nossa festa

enquanto eu soco este pilão

este surdo

poema

que não toca no rádio

que o povo não cantará

(mas que nasce dele)

Não se prestará a análises estruturalistas

Não entrará nas antologias oficiais

Obsceno

como o salário de um trabalhador aposentado

o poema

terá o destino dos que habitam o lado escuro do país

- e espreitam.

- Ferreira Gullar, em "Na vertigem do dia", 1980.



Poema

Se morro

universo se apaga como se apagam

as coisas deste quarto

se apago a lâmpada:

os sapatos - da - ásia, as camisas

e guerras na cadeira, o paletó -

dos - andes,

bilhões de quatrilhões de seres

e de sóis

morrem comigo.

Ou não:

o sol voltará a marcar

este mesmo ponto do assoalho

onde esteve meu pé;

deste quarto

ouvirás o barulho dos ônibus na rua;

uma nova cidade

surgirá de dentro desta

como a árvore da árvore.

Só que ninguém poderá ler no esgarçar destas nuvens

a mesma história que eu leio, comovido.

- Ferreira Gullar, em "Dentro da noite veloz", 1975.




Aprendizado

Do mesmo modo que te abriste à alegria

abre-te agora ao sofrimento

que é fruto dela

e seu avesso ardente.


Do mesmo modo

que da alegria foste

ao fundo

e te perdeste nela

e te achaste

nessa perda

deixa que a dor se exerça agora

sem mentiras

nem desculpas

e em tua carne vaporize

toda ilusão


que a vida só consome

o que a alimenta.

- Ferreira Gullar, em "Barulhos", 1987.



"A poesia não fala de tudo. Existe uma parte da vida sobre a qual a poesia não fala, mas eu também sou essas outras coisas."

- Ferreira Gullar, na revista Cult, nº 3, out./1997.



“A arte existe, porque a vida não basta!”

- Ferreira Gullar



Dois e Dois: Quatro

Como dois e dois são quatro

sei que a vida vale a pena

embora o pão seja caro

e a liberdade pequena


Como teus olhos são claros

e a tua pele, morena


como é azul o oceano

e a lagoa, serena


como um tempo de alegria

por trás do terror me acena


e a noite carrega o dia

no seu colo de açucena


– sei que dois e dois são quatro

sei que a vida vale a pena


mesmo que o pão seja caro

e a liberdade, pequena.

-Ferreira Gullar, “Melhores Poemas de Ferreira Gullar).








Ferreira Gullar, pseudônimo de José Ribamar Ferreira (10 de setembro de 1930, São Luís MA - 04 de dezembro de 2016, Rio de Janeiro). Poeta, ensaísta, crítico de arte, autor teatral e tradutor brasileiro.