Fagundes Varela

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O Sabiá

(Cançoneta)


Oh! meu sabiá formoso,

Sonoroso,

Já desponta a madrugada,

Desabrocha a linda rosa

Donairosa,

Sobre a campina orvalhada.


Manso o regato murmura

Na verdura

Descrevendo giros mil,

Some-se a estrela brilhante,

Vacilante,

No horizonte cor de anil.


Ergue-te, oh! meu passarinho,

De teu ninho,

Vem gozar da madrugada...

Modula teu terno canto,

Doce encanto

De minh’alma amargurada.


Vem junto à minha janela,

Sobre a bela

Verdejante laranjeira,

Beber o eflúvio das flores,

Teus amores,

Nas asas de aura fagueira.


Desprende a voz adorada,

Namorada,

Poeta da solidão,

Ah! vem lançar com encanto

Mais um canto,

No livro da criação!


Oh! meu sabiá formoso,

Sonoroso,

Já desponta a madrugada...

Deixa teu ninho altaneiro,

Vem ligeiro

Saudar a luz da alvorada.

- Fagundes Varela, em "Vozes da América", 1864.



A flor de maracujá

Pelas rosas, pelos lírios,

Pelas abelhas, sinhá,

Pelas notas mais chorosas

Do canto do sabiá,

Pelo cálice de angústias

Da flor do maracujá!


Pelo jasmim, pelo goivo,

Pelo agreste manacá,

Pelas gotas de sereno

Nas folhas do gravatá,

Pela coroa de espinhos

Da flor do maracujá!


Pelas tranças de mãe-dágua

Que junto da fonte está,

Pelos colibris que brincam

Nas alvas plumas do ubá,

Pelos cravos desenhados

Na flor do maracujá!


Pelas azuis borboletas

Que descem do Panamá,

Pelos tesouros ocultos

Nas minas do Sincorá,

Pelas chagas roxeadas

Da flor do maracujá!


Pelo mar, pelo deserto,

Pelas montanhas, sinhá!

Pelas florestas imensas,

Que falam de Jeová!

Pela lança ensangüentada

Da flor do maracujá!


Por tudo o que o céu revela,

Por tudo o que a terra dá

Eu te juro que minh’alma

De tua alma escrava está!...

Guarda contigo este emblema

Da flor do maracujá!


Não se enojem teus ouvidos

De tantas rimas em - á -

Mas ouve meus juramentos,

Meus cantos, ouve, sinhá!

Te peço pelos mistérios

Da flor do maracujá!

- Fagundes Varela, em "Cantos meridionais", 1869.



Canto do sertanejo

Salve, oh! florestas sombrias,

Salve, oh! broncas penedias,

Onde as rijas ventanias

Murmuram fera canção,

Nas sombras deste deserto

Do norte ao rude concerto,

Sentado de Deus tão perto

Quem é que teme o Bretão?


Cobre-se a selva de flores,

Brincam voláteis cantores

Bebendo os langues odores

Que passam na viração,

Rugem cavernas frementes,

Silvam medonhas serpentes,

Bradam raivosas torrentes,

Quem é que teme o Bretão?


Ah! correi filhos das matas,

Através das cataratas,

Entre suaves cantatas

Ao gênio da solidão,

Cuspi nos dias escassos,

Rompei os imigos laços...

Não tendes dois fortes braços?

Quem é que teme o Bretão?


Loucos! nas fundas clareiras,

Aos urros das cachoeiras

Nas brenhas das cordilheiras,

Feia morte encontrarão!

Quem tem do ermo as grandezas,

As serras por fortalezas

Não teme as loucas bravezas

Do temerário Bretão!


Daqui decide-se a sorte,

Daqui troveja-se a morte,

Daqui se extingue a coorte

Que insulta a brava nação!...

Gritos das selvas, dos montes,

Dos matagais e das fontes

Retumbam nos horizontes...

Quem é que teme o Bretão?


Salve, oh! florestas sombrias,

Salve, oh! broncas penedias,

Onde as rijas ventanias

Perpassam varrendo o chão,

Neste profundo deserto

De negros antros coberto

Sentado de Deus tão perto

Quem é que teme o Bretão?

- Fagundes Varela, em "Noturnas", 1861.



Em viagem

A vida na cidades me enfastia,

Enoja-me o tropel das multidões,

O sopro do egoísmo e do interesse

Mata-me nalma a flor das ilusões.


Mata-me nalma a flor das ilusões

Tanta mentira, tão fingido rir,

E cheio e farto de tristeza e tédio

Rejeito as glórias de falaz porvir!


Rejeito as glórias de falaz porvir,

Galas e festas, o prazer talvez,

E busco altivo as solidões profundas

Que dormem quedas do Senhor aos pés.


Que dormem quedas do Senhor aos pés,

Ao doce brilho dos clarões astrais,

Ricas de gozos que não tem o mundo,

Pródigas sempre de beleza e paz!

- Fagundes Varela, em "Cantos do Ermo e da Cidade", 1869.



Cântico do Calvário

[À memória de meu filho

Morto a 11 de dezembro de 1863].


Eras na vida a pomba predileta

Que sobre um mar de angústias conduzia

O ramo da esperança. — Eras a estrela

Que entre as névoas do inverno cintilava

Apontando o caminho ao pegureiro.

Eras a messe de um dourado estio.

Eras o idílio de um amor sublime.

Eras a glória, — a inspiração, — a pátria,

O porvir de teu pai! — Ah! no entanto,

Pomba, — varou-te a flecha do destino!

Astro, — engoliu-te o temporal do norte!

Teto, caíste! — Crença, já não vives!


Correi, correi, oh! lágrimas saudosas,

Legado acerbo da ventura extinta,

Dúbios archotes que a tremer clareiam

A lousa fria de um sonhar que é morto!

Correi! Um dia vos verei mais belas

Que os diamantes de Ofir e de Golgonda

Fulgurar na coroa de martírios

Que me circunda a fronte cismadora!

São mortos para mim da noite os fachos,

Mas Deus vos faz brilhar, lágrimas santas,

E à vossa luz caminharei nos ermos!

Estrelas do sofrer, — gotas de mágoa,

Brando orvalho do céu! — Sede benditas!

Oh! filho de minh'alma! Última rosa

Que neste solo ingrato vicejava!

Minha esperança amargamente doce!

Quando as garças vierem do ocidente

Buscando um novo clima onde pousarem,

Não mais te embalarei sobre os joelhos,

Nem de teus olhos no cerúleo brilho

Acharei um consolo a meus tormentos!

Não mais invocarei a musa errante

Nesses retiros onde cada folha

Era um polido espelho de esmeralda

Que refletia os fugitivos quadros

Dos suspirados tempos que se foram!

Não mais perdido em vaporosas cismas

Escutarei ao pôr do sol, nas serras,

Vibrar a trompa sonorosa e leda

Do caçador que aos lares se recolhe!


Não mais! A areia tem corrido, e o livro

De minha infanda história está completo!

Pouco tenho de anciar! Um passo ainda

E o fruto de meus dias, negro, podre,

Do galho eivado rolará por terra!

Ainda um treno, e o vendaval sem freio

Ao soprar quebrará a última fibra

Da lira infausta que nas mãos sustento!

Tornei-me o eco das tristezas todas

Que entre os homens achei! O lago escuro

Onde ao clarão dos fogos da tormenta

Miram-se as larvas fúnebres do estrago!

Por toda a parte em que arrastei meu manto

Deixei um traço fundo de agonias! ...


Oh! quantas horas não gastei, sentado

Sobre as costas bravias do Oceano,

Esperando que a vida se esvaísse

Como um floco de espuma, ou como o friso

Que deixa n'água o lenho do barqueiro!

Quantos momentos de loucura e febre

Não consumi perdido nos desertos,

Escutando os rumores das florestas,

E procurando nessas vozes torvas

Distinguir o meu cântico de morte!

Quantas noites de angústias e delírios

Não velei, entre as sombras espreitando

A passagem veloz do gênio horrendo

Que o mundo abate ao galopar infrene

Do selvagem corcel? ... E tudo embalde!

A vida parecia ardente e douda

Agarrar-se a meu ser! ... E tu tão jovem,

Tão puro ainda, ainda n'alvorada,

Ave banhada em mares de esperança,


Rosa em botão, crisálida entre luzes,

Foste o escolhido na tremenda ceifa!

Ah! quando a vez primeira em meus cabelos

Senti bater teu hálito suave;

Quando em meus braços te cerrei, ouvindo

Pulsar-te o coração divino ainda;

Quando fitei teus olhos sossegados,

Abismos de inocência e de candura,

E baixo e a medo murmurei: meu filho!

Meu filho! frase imensa, inexplicável,

Grata como o chorar de Madalena

Aos pés do Redentor ... ah! pelas fibras

Senti rugir o vento incendiado

Desse amor infinito que eterniza

O consórcio dos orbes que se enredam

Dos mistérios do ser na teia augusta!

Que prende o céu à terra e a terra aos anjos!

Que se expande em torrentes inefáveis

Do seio imaculado de Maria!

Cegou-me tanta luz! Errei, fui homem!

E de meu erro a punição cruenta

Na mesma glória que elevou-me aos astros,

Chorando aos pés da cruz, hoje padeço!


O som da orquestra, o retumbar dos bronzes,

A voz mentida de rafeiros bardos,

Torpe alegria que circunda os berços

Quando a opulência doura-lhes as bordas,

Não te saudaram ao sorrir primeiro,

Clícía mimosa rebentada à sombra!

Mas ah! se pompas, esplendor faltaram-te,

Tiveste mais que os príncipes da terra!

Templos, altares de afeição sem termos!

Mundos de sentimento e de magia!

Cantos ditados pelo próprio Deus!

Oh! quantos reis que a humanidade aviltam,

E o gênio esmagam dos soberbos tronos,

Trocariam a púrpura romana

Por um verso, uma nota, um som apenas

Dos fecundos poemas que inspiraste!


Que belos sonhos! Que ilusões benditas!

Do cantor infeliz lançaste à vida,

Arco-íris de amor! Luz da aliança,

Calma e fulgente em meio da tormenta!

Do exílio escuro a cítara chorosa

Surgiu de novo e às virações errantes

Lançou dilúvios de harmonias! — O gozo

Ao pranto sucedeu. As férreas horas

Em desejos alados se mudaram.

Noites fugiam, madrugadas vinham,

Mas sepultado num prazer profundo

Não te deixava o berço descuidoso,

Nem de teu rosto meu olhar tirava,

Nem de outros sonhos que dos teus vivia!


Como eras lindo! Nas rosadas faces

Tinhas ainda o tépido vestígio

Dos beijos divinais, — nos olhos langues

Brilhava o brando raio que acendera

A bênção do Senhor quando o deixaste!

Sobre o teu corpo a chusma dos anjinhos,

Filhos do éter e da luz, voavam,

Riam-se alegres, das caçoilas níveas

Celeste aroma te vertendo ao corpo!

E eu dizia comigo: — teu destino

Será mais belo que o cantar das fadas

Que dançam no arrebol, — mais triunfante

Que o sol nascente derribando ao nada

Muralhas de negrume! ... Irás tão alto

Como o pássaro-rei do Novo Mundo!


Ai! doudo sonho! ... Uma estação passou-se,

E tantas glórias, tão risonhos planos

Desfizeram-se em pó! O gênio escuro

Abrasou com seu facho ensangüentado

Meus soberbos castelos. A desgraça

Sentou-se em meu solar, e a soberana

Dos sinistros impérios de além-mundo

Com seu dedo real selou-te a fronte!

Inda te vejo pelas noites minhas,

Em meus dias sem luz vejo-te ainda,

Creio-te vivo, e morto te pranteio! ...


Ouço o tanger monótono dos sinos,

E cada vibração contar parece

As ilusões que murcham-se contigo!

Escuto em meio de confusas vozes,

Cheias de frases pueris, estultas,

O linho mortuário que retalham

Para envolver teu corpo! Vejo esparsas

Saudades e perpétuas, — sinto o aroma

Do incenso das igrejas, — ouço os cantos

Dos ministros de Deus que me repetem

Que não és mais da terra!... E choro embalde.


Mas não! Tu dormes no infinito seio

Do Criador dos seres! Tu me falas

Na voz dos ventos, no chorar das aves,

Talvez das ondas no respiro flébil!

Tu me contemplas lá do céu, quem sabe,

No vulto solitário de uma estrela,

E são teus raios que meu estro aquecem!

Pois bem! Mostra-me as voltas do caminho!

Brilha e fulgura no azulado manto,

Mas não te arrojes, lágrima da noite,

Nas ondas nebulosas do ocidente!

Brilha e fulgura! Quando a morte fria

Sobre mim sacudir o pó das asas,

Escada de Jacó serão teus raios

Por onde asinha subirá minh'alma.

- Fagundes Varella, em "Cantos e Fantasias", 1865.






Luiz Nicolau Fagundes Varela (17 de agosto de 1841, Rio Claro RJ - 17 de fevereiro 1875, Niterói RJ). Poeta brasileiro.