Eugénio de Andrade

Publicado em
Atualizado em



Urgentemente

É urgente o amor.

É urgente um barco no mar.


É urgente destruir certas palavras,

ódio, solidão e crueldade,

alguns lamentos,

muitas espadas.


É urgente inventar alegria,

multiplicar os beijos, as searas,

é urgente descobrir rosas e rios

e manhãs claras.


Cai o silêncio nos ombros e a luz

impura, até doer.

É urgente o amor, é urgente

permanecer.

- Eugénio de Andrade, em "Até amanhã". 1956.



O sal da língua

Escuta, escuta: tenho ainda

uma coisa a dizer.

Não é importante, eu sei, não vai

salvar o mundo, não mudará

a vida de ninguém – mas quem

é hoje capaz de salvar o mundo

ou apenas mudar o sentido

da vida de alguém?

Escuta-me, não te demoro.

É coisa pouca, como a chuvinha

que vem vindo devagar.

São três, quatro palavras, pouco

mais. Palavras que te quero confiar,

para que não se extinga o seu lume,

o seu lume breve.

Palavras que muito amei,

que talvez ame ainda.

Elas são a casa, o sal da língua.

- Eugénio de Andrade, em "O sal da língua". 1995.



A ilha

Tanta palavra para chegar a ti,

tanta palavra,

sem nenhuma alcançar

entre as ruínas

do delírio a ilha,

sempre mudando

de forma, de lugar, estremecida

chama, preguiçosa

vaga fugidia

do mar de Ulisses cor de vinho.

- Eugénio de Andrade, em "O ofício de paciência". 1994.


Árvores

Sem fadiga, as árvores regressam

ao poema. Primeiro as laranjeiras,

a seguir entram as tílias.

Sempre estiveram perto, incapazes

de se afastarem dos pequenos

olhos imensos.

À sombra dos cavalos

podia vê-las chegar carregadas

do seu aroma, dos seus frutos frios.

A tarde chegava ao fim

mas tive tempo ainda

de as sentir, com um sorriso, aproximar.

- Eugénio de Andrade, em "Os sulcos da sede". 2001.



As palavras

São como um cristal,

as palavras.

Algumas, um punhal,

um incêndio.

Outras,

orvalho apenas.


Secretas vêm, cheias de memória.

Inseguras navegam;

barcos ou beijos,

as águas estremecem.


Desamparadas, inocentes,

leves.

Tecidas são de luz

e são a noite.

E mesmo pálidas

verdes paraísos lembram ainda.


Quem as escuta? Quem

as recolhe, assim,

cruéis, desfeitas,

nas suas conchas puras?

- Eugénio de Andrade, em "Coração do dia". 1958.



Cada coisa

Cada coisa tem o seu fulgor,

a sua música.

Na laranja madura canta o sol,

na neve o melro azul.

Não só as coisas,

os próprios animais

brilham de uma luz acariciada;

quando o inverno

se aproxima dos seus olhos

a transparência das estrelas

torna-se fonte da sua respiração.

Só isso faz

com que durem ainda.

Assim o coração.

- Eugénio de Andrade, em "Sal da língua". 1995.



Música mirabilis

Talvez a ternura

crepite no pulso,

talvez o vento

súbito se levante,

talvez a palavra

atinja o seu cume,

talvez um segredo

chegue ainda a tempo


– e desperte o lume.

- Eugénio de Andrade, em "Mar de setembro". 1961.



Procuro-te

Procuro a ternura súbita,

os olhos ou o sol por nascer

do tamanho do mundo,

o sangue que nenhuma espada viu,

o ar onde a respiração é doce,

um pássaro no bosque

com a forma de um grito de alegria.


Oh, a carícia da terra,

a juventude suspensa,

a fugidia voz da água entre o azul

do prado e de um corpo estendido.


Procuro-te: fruto ou nuvem ou música.

Chamo por ti, e o teu nome ilumina

as coisas mais simples:

o pão e a água,

a cama e a mesa,

os pequenos e dóceis animais,

onde também quero que chegue

o meu canto e a manhã de maio.


Um pássaro e um navio são a mesma coisa

quando te procuro de rosto cravado na luz.

Eu sei que há diferenças

mas não quando se ama,

não quando apertamos contra o peito

uma flor ávida de orvalho.


Ter só dedos e dentes é muito triste:

dedos para amortalhar crianças,

dentes para roer a solidão,

enquanto o verão pinta de azul o céu

e o mar é devassado pelas estrelas.


Porém eu procuro-te.

antes que a morte se aproxime, procuro-te.

Nas ruas, nos barcos, na cama,

com amor, com ódio, ao sol, à chuva,

de noite, de dia, triste, alegre – procuro-te.

- Eugénio de Andrade, em "As palavras interditas". 1951.



Um simples pensamento

É a música, este romper do escuro.

Vem de longe, certamente doutros dias,

doutros lugares. Talvez tenha sido

a semente de um choupo, o riso

de uma criança, o pulo de um pardal.

Qualquer coisa em que ninguém

sequer reparou, que deixou de ser

para se tornar melodia. Trazida

por um vento pequeno, um sopro,

ou pouco mais, para tua alegria.

E agora demora-se, este sol materno,

fica comigo o resto dos dias.

Como o lume, ao chegar o inverno.

- Eugénio de Andrade, em "Os sulcos da sede". 2001.



Ver claro

Toda a poesia é luminosa, até

a mais obscura.

O leitor é que tem às vezes,

em lugar de sol, nevoeiro dentro de si.

E o nevoeiro nunca deixa ver claro.

Se regressar

outra vez e outra vez

e outra vez

a essas sílabas acesas

ficará cego de tanta claridade.

Abençoado seja se lá chegar.

- Eugénio de Andrade, em "Os sulcos da sede". 2001.



Os livros

Os livros. A sua cálida,

terna, serena pele. Amorosa

companhia. Dispostos sempre

a partilhar o sol

das suas águas. Tão dóceis,

tão calados, tão leais.

Tão luminosos na sua

branca e vegetal e cerrada

melancolia. Amados

como nenhuns outros companheiros

da alma. Tão musicais

no fluvial e transbordante

ardor de cada dia.


(Num exemplar das Geórgicas)

- Eugénio de Andrade, em "Ofício de paciência". 1994.



O olhar

Eu sentia os seus olhos beber os meus;

longamente bebiam, bebiam;

bebiam

até não me restar nas órbitas nenhuma

luz, nenhuma água,

nem sequer o sinal de neles ter chovido

naquele inverno.

- Eugénio de Andrade, em "Rente ao dizer". 1992.






Eugénio de Andrade (19 de janeiro de 1923, Póvoa de Atalaia, Portugal - 13 de junho de 2005, Porto, Portugal). Poeta e escritor português.