Elisa Lucinda

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Espelho seu

"Quero ser minha para poder ser sua

Quero nunca mais partir

Pra longe de mim.

Vem, alivia, adianta, adivinha

Quero ser sua pra poder ser minha..."

- Elisa Lucinda, em "Euteamo e suas estréias".



Da chegada do amor

Sempre quis um amor

que falasse

que soubesse o que sentisse.

Sempre quis uma amor que elaborasse

Que quando dormisse

ressonasse confiança

no sopro do sono

e trouxesse beijo

no clarão da amanhecice.


Sempre quis um amor

que coubesse no que me disse.

Sempre quis uma meninice

entre menino e senhor

uma cachorrice

onde tanto pudesse a sem-vergonhice

do macho

quanto a sabedoria do sabedor.


Sempre quis um amor cujo

BOM DIA!

morasse na eternidade de encadear os tempos:

passado presente futuro

coisa da mesma embocadura

sabor da mesma golada.

Sempre quis um amor de goleadas

cuja rede complexa

do pano de fundo dos seres

não assustasse.

Sempre quis um amor

que não se incomodasse

quando a poesia da cama me levasse.

Sempre quis uma amor

que não se chateasse

diante das diferenças.


Agora, diante da encomenda

metade de mim rasga afoita

o embrulho

e a outra metade é o

futuro de saber o segredo

que enrola o laço,

é observar

o desenho

do invólucro e compará-lo

com a calma da alma

o seu conteúdo.

Contudo

sempre quis um amor

que me coubesse futuro

e me alternasse em menina e adulto

que ora eu fosse o fácil, o sério

e ora um doce mistério

que ora eu fosse medo-asneira

e ora eu fosse brincadeira

ultra-sonografia do furor,

sempre quis um amor

que sem tensa-corrida-de ocorresse.

Sempre quis um amor

que acontecesse

sem esforço

sem medo da inspiração

por ele acabar.

Sempre quis um amor

de abafar,

(não o caso)

mas cuja demora de ocaso

estivesse imensamente

nas nossas mãos.

Sem senãos.

Sempre quis um amor

com definição de quero

sem o lero-lero da falsa sedução.

Eu sempre disse não

à constituição dos séculos

que diz que o "garantido" amor

é a sua negação.

Sempre quis um amor

que gozasse

e que pouco antes

de chegar a esse céu

se anunciasse.


Sempre quis um amor

que vivesse a felicidade

sem reclamar dela ou disso.

Sempre quis um amor não omisso

e que sua estórias me contasse.

Ah, eu sempre quis um amor que amasse.

- Elisa Lucinda, em "Euteamo e suas estréias".



O poema do semelhante

O Deus da parecença

que nos costura em igualdade

que nos papel-carboniza

em sentimento

que nos pluraliza

que nos banaliza

por baixo e por dentro,

foi este Deus que deu

destino aos meus versos,


Foi Ele quem arrancou deles

a roupa de indivíduo

e deu-lhes outra de indivíduo

ainda maior, embora mais justa.


Me assusta e acalma

ser portadora de várias almas

de um só som comum eco

ser reverberante

espelho, semelhante

ser a boca

ser a dona da palavra sem dono

de tanto dono que tem.


Esse Deus sabe que alguém é apenas

o singular da palavra multidão

É mundão

todo mundo beija

todo mundo almeja

todo mundo deseja

todo mundo chora

alguns por dentro

alguns por fora

alguém sempre chega

alguém sempre demora.


O Deus que cuida do

não-desperdício dos poetas

deu-me essa festa

de similitude

bateu-me no peito do meu amigo

encostou-me a ele

em atitude de verso beijo e umbigos,

extirpou de mim o exclusivo:

a solidão da bravura

a solidão do medo

a solidão da usura

a solidão da coragem

a solidão da bobagem

a solidão da virtude

a solidão da viagem

a solidão do erro

a solidão do sexo

a solidão do zelo

a solidão do nexo.


O Deus soprador de carmas

deu de eu ser parecida

Aparecida

santa

puta

criança

deu de me fazer

diferente

pra que eu provasse

da alegria

de ser igual a toda gente


Esse Deus deu coletivo

ao meu particular

sem eu nem reclamar

Foi Ele, o Deus da par-essência

O Deus da essência par.


Não fosse a inteligência

da semelhança

seria só o meu amor

seria só a minha dor

bobinha e sem bonança


seria sozinha minha esperança.

- Elisa Lucinda, em "O semelhante".




"A nossa única revolução é educacional. Essa é que vai mudar tudo."

- Elisa Lucinda






Elisa Lucinda Campos Gomes (02 de fevereiro de 1958, Vitória, Espírito Santo).

Jornalista, professora, atriz, escritora e poetisa brasileira.