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Eduardo Pitta
Atualizado em
Perseguem-me fantasmas
de outros tempos.
Árvores despidas
que o horizonte plúmbeo
ajudou a recortar
com uma nitidez
de pesadelo.
E tudo agora me diz
dos tempos em que
menino
me deleitava no estalar
de folhas em carne viva.
- Eduardo Pitta, "Sílaba a sílaba" (1974), no livro "Desobediência - poemas escolhidos".
&
Ocupamos a paisagem
que, desocupada, se ocupa
de nós.
Tempo de ocupação, este.
Somos o estrangeiro
que o silêncio de paredes
brancas e esquecidas
perturbou.
Extasiado ao menor rumor
de um estio
duro e claro
— todo lâminas.
Perplexo da memória
destes dias
sufocados em tédio
e cal.
Da palavra para a pedra
arrastando-se aquáticos
— as mais sazonadas
as menos polidas.
Crestada que foi,
na raiz do tempo, toda
a subliminar tentativa
de retorno.
- Eduardo Pitta, "Sílaba a sílaba" (1974), no livro "Desobediência - poemas escolhidos".
&
Hesita bastante. O inferno
é uma disciplina como qualquer outra.
Dias de vinho e rosas
pagos a peso de flagelo.
O arrebatado comércio dos sentidos?
Na cidade aberta a dementada luz.
- Eduardo Pitta, "'Mandrágora'/Arbítrio" (1991), no livro "Desobediência - poemas escolhidos".
&
Esse mundo acabou,
sobrevive-lhe o eco de
algumas vozes.
O homem que erra de cidade
para cidade
conhece a voracidade dos espelhos
o brilho ácido da cal
o reiterado equívoco das marés.
E sabe, soube sempre
que a casa já lá não está.
Nem a casa nem a memória
que quiseram que tivesse.
Varrido por um sopro insaturável
o olhar vacila, acossado
entre ruínas
e a traficada solidão.
- Eduardo Pitta, "Archote Glaciar" (1988), no livro "Desobediência - poemas escolhidos".
&
Agora que as palavras secaram
e se fez noite
entre nós dois,
agora que ambos sabemos
da irreversibilidade
do tempo perdido,
resta-nos este poema de amor e solidão.
No mais é o recalcitrar dos dias,
perseguindo-nos, impiedosos,
com relógios,
pessoas,
paredes demasiado cinzentas,
todas as coisas inevitavelmente
lógicas.
Que a nossa nem sequer foi uma história
diferente.
A originalidade estava toda na pólvora
dos obuses, no circunstanciado
afivelar
dos sorrisos à nossa volta
e no arcaísmo da viela onde fazíamos amor.
- Eduardo Pitta, no livro "Marcas de água".
&
A tua ausência
a encher-se de dunas.
Aquele bater de vidraças
na orla da praia.
O silêncio a insistir
a recusar-se ao rumor.
E a vida a fluir,
lá fora.
- Eduardo Pitta, "Um cão de angústia progride" (1979), no livro "Desobediência - poemas escolhidos".
&
Foi contigo que aprendi a cidade,sílaba a sílaba,pedra, aço e lascas de cristal.
A cidade dos pássaros interditosna ocasionalidadede um galho por acaso.
A cidade das buganvíliasvioláceas de medo,excrescentes de lirismo.
A cidade dos pães calcetadose dos meninos que, defome, os apetecem.
A cidade das culatrasinevitáveispara o alvo que lhes sobra.
A cidade protestada a prazode um diade nunca mais.
A cidade geometrizadana infalibilidadedos seus labirintos.
Foi contigo, foi.Foi contigo que aprendi a amardesordenadamente.
- Eduardo Pitta, "Sílaba a sílaba" (1974), no livro "Desobediência - poemas escolhidos"
&
A vida é uma ferida?
O coração lateja?
O sangue é uma parede cega?
E se tudo, de repente?
- Eduardo Pitta, "'Amuletos'/Arbítrio" (1991), no livro "Desobediência - poemas escolhidos".
Eduardo Pitta e Jorge Neves
Eduardo Pitta (09 de agosto de 1949, Lourenço Marques, Moçambique - 25 de julho de 2023, Torres Vedras, Portugal). Poeta, escritor ensaísta e crítico literário.