Cruz e Sousa

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"Nada há que me domine e que me vença

Quando a minha alma mudamente acorda...

Ela rebenta em flor, ela transborda

Nos alvoroços da emoção imensa."

- Cruz e Sousa


Cárcere das Almas

Ah! Toda a alma num cárcere anda presa,

Soluçando nas trevas, entre as grades

Do calabouço olhando imensidades,

Mares, estrelas, tardes, natureza.


Tudo se veste de uma igual grandeza

Quando a alma entre grilhões as liberdades

Sonha e, sonhando, as imortalidades

Rasga no etéreo o Espaço da Pureza.


Ó almas presas, mudas e fechadas

Nas prisões colossais e abandonadas,

Da Dor no calabouço, atroz, funéreo!


Nesses silêncios solitários, graves,

Que chaveiro do Céu possui as chaves

para abrir-vos as portas do Mistério?!


Ó Formas vagas, nebulosidades!

Essência das eternas virgindades!

Ó intensas quimeras do Desejo...

- Cruz e Sousa, do livro “Últimos Sonetos", 1905.



Ah! Noite! Feiticeira Noite! Ó Noite misericordiosa, coroada no trono das Constelações pela tiara de prata e diamantes do Luar, Tu, que ressuscitas dos sepulcros solenes do Passado tantas Esperanças, tantas Ilusões, tantas e tamanhas Saudades, ó Noite! Melancólica! Soturna! Voz triste, recordativamente triste, de tudo o que está morto, acabado, perdido nas correntes eternas dos abismos bramantes do Nada, ó Noite meditativa! Fecunda-me, penetra-me dos fluidos magnéticos do grande Sonho das tuas Solidões panteístas e assinaladas, dá-me as tuas brumas paradisíacas, dá-me os teus cismares de Monja, dá-me as tuas asas reveladoras, dá-me as tuas auréolas tenebrosas, a eloquência de ouro das tuas Estrelas, a profundidade misteriosa dos teus sugestionadores fantasmas, todos os surdos soluços que rugem e rasgam o majestoso Mediterrâneo dos teus evocativos e pacificadores Silêncios!”

-Cruz e Sousa, fragmento do poema em prosa “O Emparedado”, no livro “Evocações” (1898).



Carnal e Místico

Pelas regiões tenuíssimas da bruma

vagam as Virgens e as Estrelas raras...

Como que o leve aroma das searas

todo o horizonte em derredor perfuma.


Numa evaporação de branca espuma

vão diluindo as perspectivas claras...

Com brilhos crus e fúlgidos de tiaras

as Estrelas apagam-se uma a uma.


E então, na treva, em místicas dormências,

desfila, com sidéreas latescências,

das Virgens o sonâmbulo cortejo...

- Cruz e Sousa, do livro “Broquéis”, 1893.



“Era mister romper o Espaço toldado de brumas, rasgar as espessuras,

as densas argumentações e saberes, desdenhar os juízos altos, por

decreto e por lei, e , enfim, surgir...

Era mister rir com serenidade e afinal com tédio dessa celulazinha

bitolar que irrompe por toda a parte, salta, fecunda, alastra,

explode, transborda e se propaga.

Era mister respirar a grandes haustos na Natureza, desafogar o

peito das opressões ambientes, agitar desassombradamente a cabeça

diante da liberdade absoluta e profunda do Infinito.

Era mister que me deixassem ao menos ser livre no Silêncio e na

Solidão. Que não me negassem a necessidade fatal, imperiosa,

ingênita, de sacudir com liberdade e com volúpia os nervos e

desprender com largueza e com audácia o meu verbo soluçante, na

força impetuosa e indomável da Vontade.”

-Cruz e Sousa, fragmento do poema em prosa “O Emparedado”, no livro “Evocações” (1898).



Alma solitária

Ó Alma doce e triste e palpitante!

que cítaras soluçam solitárias

pelas Regiões longínquas, visionárias

do teu Sonho secreto e fascinante!


Quantas zonas de luz purificante,

quantos silêncios, quantas sombras várias

de esferas imortais, imaginárias,

falam contigo, ó Alma cativante!


que chama acende os teus faróis noturnos

e veste os teus mistérios taciturnos

dos esplendores do arco de aliança?


Por que és assim, melancolicamente,

como um arcanjo infante, adolescente,

esquecido nos vales da Esperança?!

- Cruz e Sousa, do livro “Últimos Sonetos”, 1905.



Ironia de lágrimas

Junto da morte que floresce a Vida!

Andamos rindo junto à sepultura.

A boca aberta, escancarada, escura

da cova é como flor apodrecida.


A Morte lembra a estranha Margarida

do nosso corpo, Fausto sem ventura...

ela anda em torno a toda a criatura

numa dança macabra indefinida.


Vem revestida em suas negras sedas

e a marteladas lúgubres e tredas

das Ilusões o eterno esquife prega.

- Cruz e Sousa, do livro "Últimos sonetos", 1905.



Livre

Livre! Ser livre da matéria escrava,

arrancar os grilhões que nos flagelam

e livre penetrar nos Dons que selam

a alma e lhe emprestam toda a etérea lava.


Livre da humana, da terrestre bava

dos corações daninhos que regelam,

quando os nossos sentidos se rebelam

contra a Infâmia bifronte que deprava.


Livre! bem livre para andar mais puro,

mais junto à Natureza e mais seguro

do seu Amor, de todas as justiças.


Livre! para sentir a Natureza,

para gozar, na universal Grandeza,

Fecundas e arcangélicas preguiças.

- Cruz e Sousa, do livro “Últimos Sonetos”, 1905.



“Todas as portas e atalhos fechados ao caminho da vida, e, para mim, pobre artista ariano, ariano sim porque adquiri, por adoção sistemática, as qualidades altas desta raça, para mim que sonho com a torre de luar da graça e da ilusão, tudo vi escarnecedoramente, diabolicamente, num tom grotesco de ópera bufa. Quem me mandou vir cá abaixo à terra arrastar a calceta da vida! Procurar ser elemento entre o espírito humano?! Para quê?! Um triste negro, odiado pelas castas cultas, batido das sociedades, mas sempre batido, escorraçado de todo o leito, cuspido de todo o lar como um leproso sinistro! Pois como! Ser artista com esta cor! Vir pela hierarquia de Eça, ou de Zola, generalizar Spencer ou Gama Rosa, ter estesia artística e verve, com esta cor? Horrível!”

- Cruz e Sousa



Vida Obscura

Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro,

Ó ser humilde entre os humildes seres.

Embriagado, tonto dos prazeres,

O mundo para ti foi negro e duro.


Atravessaste num silêncio escuro

A vida presa e trágicos deveres

E chegaste ao saber de altos saberes

Tornando-te mais simples e mais puro.


Ninguém te viu o sentimento inquieto,

Magoado, oculto e aterrador, secreto.

Que o coração te apunhalou no mundo.


Mas eu que sempre te segui os passos

Sei que cruz infernal prendeu-te os braços

E o teu suspiro como foi profundo!

- Cruz e Sousa, do livro "Últimos sonetos", 1905.



Longe de Tudo

E livres, livres desta vã matéria,

longe, nos claros astros peregrinos

que havemos de encontrar os dons divinos

e a grande paz, a grande paz sidérea.


Cá nesta humana e trágica miséria,

nestes surdos abismos assassinos

teremos de colher de atros destinos

a flor apodrecida e deletéria.


O baixo mundo que troveja e brama

só nos mostra a caveira e só a lama,

ah! só a lama e movimentos lassos...


Mas as almas irmãs, almas perfeitas,

hão de trocar, nas Regiões eleitas,

largos, profundos, imortais abraços!

- Cruz e Sousa, do livro “Últimos Sonetos”, 1905.



Alma solitária

Ó Alma doce e triste e palpitante!

que cítaras soluçam solitárias

pelas Regiões longínquas, visionárias

do teu Sonho secreto e fascinante!


Quantas zonas de luz purificante,

quantos silêncios, quantas sombras várias

de esferas imortais, imaginárias,

falam contigo, ó Alma cativante!


que chama acende os teus faróis noturnos

e veste os teus mistérios taciturnos

dos esplendores do arco de aliança?


Por que és assim, melancolicamente,

como um arcanjo infante, adolescente,

esquecido nos vales da Esperança?!

- Cruz e Sousa, do livro “Últimos Sonetos”, 1905.




João da Cruz e Sousa ( Nasceu em 24 de novembro 1861 em Florianópolis SC - faleceu em 19 de março de 1898 em Minas Gerais). Vítima de perseguições raciais, foi duramente discriminado e sua obra só foi reconhecida anos depois de sua passagem. Poeta brasileiro conhecido pela alcunha de Cisne Negro.


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"Dos sofrimentos físicos e morais de sua vida, do seu penoso esforço de ascensão na escala social, do seu sonho místico de uma arte que seria uma 'eucarística espiritualização', do fundo indômito de seu ser de 'emparedado' dentro da raça desprezada, ele tirou os acentos patéticos que lhe garantem a perpetuidade de sua obra na literatura brasileira. Não há gritos mais dilacerantes, suspiros mais profundos do que os seus."

- Manuel Bandeira.