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Auta de Souza
Atualizado em
Meu Sonho
(A Yayá e a Maria Leonor Medeiros)
Eu tenho um sonho que no Céu mora
Feito de luz e feito de amor,
Um sonho róseo como uma aurora,
Um sonho lindo como uma flor.
E eu vivo sempre, sempre sonhando,
O mesmo sonho de noite e dia,
O mesmo sonho suave e brando
De minha vida toda a alegria.
Quando soluço, quando minh’alma,
Cheia de angústia, fica a chorar.
O sonho amado me traz a calma
E, então, minh’alma põe-se a rezar.
Quando, nas noites frias de inverno,
Eu tenho medo da tempestade,
Ele, o meu sonho, consolo eterno,
Transforma as sombras em claridade.
Quando no seio, choroso e louco,
Palpita, incerto, meu coração...
O sonho doce vem, pouco a pouco,
Trazer-me a graça de uma ilusão.
E eu canto e rio na luz dispersa
Deste dilúvio de fantasias...
Minh’alma voa no Azul imersa
Buscando a pátria das harmonias.
Imagem doce, visão sagrada,
Quimera excelsa dos meus amores,
Pérola branca, delícia amada,
Bálsamo puro das minhas dores;
Ele, o meu sonho, farol que encanta,
Guia-me à pátria da salvação,
Sorriso ingênuo, relíquia santa,
Do relicário do coração!
- Auta de Souza, “Horto”, 1900.
Consolo supremo
(A quem sofre)
“Bem aventurados os que choram,
porque eles serão consolados.”
JESUS.
Os tristes dizem que a vida
É feita de dissabores
E a alma verga abatida
Ao peso das grandes dores.
Não acredito que seja
Assim como dizem, não...
Ai daquele que deseja
Viver sem uma ilusão!
Se há noites frias, escuras,
Também há noites formosas;
Há risos nas amarguras;
Entre espinhos nascem rosas.
E rosas também cobriram
O lenho santo da Cruz,
Quando os espinhos cingiram
A cabeça de Jesus.
Rosas do sangue adorado
- Fonte de graça e de fé -
Brotando do rosto amado
Do Filho de Nazaré.
Ó alma triste, chorosa
Como uma dália no inverno,
Despe da mágoa trevosa
O negro cilício eterno!
Enquanto vires estrelas
Do Céu no imenso sacrário,
Na terra flores singelas
E uma Cruz sobre o Calvário;
Enquanto, mansa, pousar
A prece nos lábios teus,
E souberes murmurar
Com as mãos unidas: meu Deus!
Não digas que à luz vieste
Para chorar e sofrer,
E como a plantinha agreste
Sonhar um dia e... morrer...
Não digas, pobre querida!
Mesmo se a dor te magoa;
É sempre feliz na vida
A alma que é pura e boa.
- Auta de Souza, in “Horto”, 1900.
Noites amadas
Ó noites claras de lua cheia!
Em vosso seio, noites chorosas,
Minh’alma canta como a sereia,
Vive cantando n’um mar de rosas;
Noites queridas que Deus prateia
Com a luz dos sonhos das nebulosas,
Ó noites claras de lua cheia,
Como eu vos amo, noites formosas!
Vós sois um rio de luz sagrada
Onde, sonhando, passa embalada
Minha Esperança de mágoas nua...
Ó noites claras de lua plena
Que encheis a terra de paz serena,
Como eu vos amo, noites de lua!
- Auta de Souza [Macaíba, Agosto de 1898], “Horto”, 1900.
Olhos Azuis
(A Palmyra Magalhães)
O teu olhar azul claro
Reflete não sei que luz,
O brilho fulgente e raro
Do meigo olhar de Jesus.
Eu cuido ver todo o encanto,
Toda a beleza do Céu,
Nestes teus olhos sem pranto,
N’estes teus olhos sem véu.
Sinto uma doce ventura,
Uma alegria sem fim,
Se d’eles a chama pura
A’s vezes cai sobre mim.
São flores azuis boiando
À tona d’água, de leve,
Esses dois olhos beijando
O teu semblante de neve!
- Auta de Souza, [Angicos, 1896], “Horto”, 1900.
Minh'Alma e o verso
Não me olhes mais assim... Eu fico triste
Quando a fitar-me o teu olhar persiste
Choroso e suplicante...
Já não possuo a crença que conforta.
Vai bater, meu amigo, a uma outra porta.
Em terra mais distante.
Cuidavas que era amor o que eu sentia
Quando meus olhos, loucos de alegria,
Sem nuvem de desgosto,
Cheios de luz e cheios de esperança,
N’uma carícia ingenuamente mansa,
Pousavam no teu rosto?
Cuidavas que era amor? Ah! se assim fosse!
Se eu conhecesse esta palavra doce,
Este queixume amado!
Talvez minh’alma mesmo a ti voasse
E n’um berço de flor ela embalasse
Um riso abençoado.
Mas, não, escuta bem: eu não te amava.
Minha alma era, como agora, escrava...
Meu sonho é tão diverso!
Tenho alguém a quem amo mais que a vida,
Deus abençoa esta paixão querida:
Eu sou noiva do Verso.
E foi assim. Num dia muito frio.
Achei meu seio de ilusões vazio
E o coração chorando...
Era o meu ideal que se ia embora,
E eu soluçava, enquanto alguém lá fora
Baixinho ia cantando:
“Eu sou o orvalho sagrado
Que dá vida e alento às flores;
Eu sou o bálsamo amado
Que sara todas as dores.
Eu sou o pequeno cofre
Que guarda os risos da Aurora;
Perto de mim ninguém sofre,
Perto de mim ninguém chora.
Todos os dias bem cedo
Eu saio a procurar lírios,
Para enfeitar em segredo
A negra cruz dos martírios.
Vem para mim, alma triste
Que soluças de agonia;
No meu seio o Amor existe,
Eu sou filho da Poesia.”
Meu coração despiu toda a amargura,
Embalado na mística doçura
Da voz que ressoava...
Presa do Amor na delirante calma,
Eu fui abrir as portas de minh’alma
Ao verso que passava...
Desde esse dia, nunca mais deixei-o;
Ele vive cantando no meu seio,
N’uma algazarra louca!
Que seria de mim se ele fugisse,
Que seria de mim se não ouvisse
A voz de sua boca!
Não posso dar-te amor, bem vês. Meus sonhos
São da Poesia os ideais risonhos,
Em lago de ouro imersos...
Não sabias dourar os meus abrolhos,
E eu procurava apenas nos teus olhos
Assunto para versos.
- Auta de Souza, em “Horto”, 1900.
Auta de Souza, (12 de setembro 1876, Macaíba, Rio Grande do Norte - 07 de fevereiro 1901, Natal, Rio Grande do Norte). Poetisa, autora do livro Horto, publicado em 1900. Muitos dos seus poemas foram musicados por compositores regionais e passados oralmente de geração em geração. Além disso, é conhecida como mentora e protetora espiritual pelos espíritas kardecistas.