Augusto dos Anjos

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A idéia

De onde ela vem?! De que matéria bruta

Vem essa luz que sobre as nebulosas

Cai de incógnitas criptas misteriosas

Como as estalactites duma gruta?!


Vem da psicogenética e alta luta

Do feixe de moléculas nervosas,

Que, em desintegração maravilhosas,

Delibera, e depois, quer e executa!


Vem do encéfalo absconso que a constringe,

Chega em seguida às cordas da laringe,

Tísica, tênue, mínima, raquítica…


Quebra a força centrípeda que a amarra,

Mas, de repente, e quase morta, esbarra

No molambo da língua paralítica!

- Augusto dos Anjos, "Eu e outras poesias".



A esperança

A Esperança não murcha, ela não cansa,

Também como ela não sucumbe a Crença.

Vão-se sonhos nas asas da Descrença,

Voltam sonhos nas asas da Esperança.


Muita gente infeliz assim não pensa;

No entanto o mundo é uma ilusão completa,

E não é a Esperança por sentença

Este laço que ao mundo nos manieta?


Mocidade, portanto, ergue o teu grito,

Sirva-te a crença de fanal bendito,

Salve-te a glória no futuro - avança!


E eu, que vivo atrelado ao desalento,

Também espero o fim do meu tormento,

Na voz da morte a me bradar: descansa!

- Augusto dos Anjos, em "Eu e outras poesias".



Versos Íntimos

Vês! Ninguém assistiu ao formidável

Enterro de tua última quimera.

Somente a Ingratidão -- esta pantera --

Foi tua companheira inseparável!


Acostuma-te à lama que te espera!

O Homem, que, nesta terra miserável,

Mora, entre feras, sente inevitável

Necessidade de também ser fera.


Toma um fósforo. Acende teu cigarro!

o beijo, amigo, é a véspera do escarro,

A mão que afaga é a mesma que apedreja.


Se a alguém causa inda pena a tua chaga,

Apedreja essa mão vil que te afaga,

Escarra nessa boca que te beija!

- Augusto dos Anjos, in "Eu e outras poesias".



Eterna mágoa

O homem por sobre quem caiu a praga

Da tristeza do Mundo, o homem que é triste

Para todos os séculos existe

E nunca mais o seu pesar se apaga!


Não crê em nada, pois, nada há que traga

Consolo à Mágoa, a que só ele assiste.

Quer resistir, e quanto mais resiste

Mais se lhe aumenta e se lhe afunda a chaga.


Sabe que sofre, mas o que não sabe

É que essa mágoa infinda assim, não cabe

Na sua vida, é que essa mágoa infinda


Transpõe a vida do seu corpo inerme;

E quando esse homem se transforma em verme

É essa mágoa que o acompanha ainda!

- Augusto dos Anjos, em "Eu e outras poesias".



Idealização da humanidade futura

Rugia nos meus centros cerebrais

A multidão dos séculos futuros

-- Homens que a herança de ímpetos impuros

Tornara etnicamente irracionais!


Não sei que livro, em letras garrafais,

Meus olhos liam! No húmus dos monturos,

Realizavam-se os partos mais obscuros,

Dentre as genealogias animais!


Como quem esmigalha protozoários

Meti todos os dedos mercenários

Na consciência daquela multidão...


E, em vez de achar a luz que os Céus inflama,

Somente achei moléculas de lama

E a mosca alegre da putrefação!

- Augusto dos Anjos, em "Eu e outras poesias".



O meu nirvana

No alheamento da obscura forma humana,

De que, pensando, me desencarcero,

Foi que eu, num grito de emoção, sincero

Encontrei, afinal, o meu Nirvana!


Nessa manumissão schopenhauereana,

Onde a Vida do humano aspecto fero

Se desarraiga, eu, feito força, impero

Na imanência da Idéia Soberana!


Destruída a sensação que oriunda fora

Do tato -- ínfima antena aferidora

Destas tegumentárias mãos plebéias --


Gozo o prazer, que os anos não carcomem,

De haver trocado a minha forma de homem

Pela imortalidade das Idéias!

- Augusto dos Anjos, em "Eu e outras poesias".




Cítara mística

Cantas... E eu ouço etérea cavatina!

Há nos teus lábios -- dois sangrentos círios --

A gêmea florescência de dois lírios

Entrelaçados numa unção divina.


Como o santo levita dos Martírios,

Rendo piedosa dúlia peregrina

À tua doce voz que me fascina,

-- Harpa virgem brandindo mil delírios!


Quedo-me aos poucos, penseroso e pasmo,

E a Noite afeia como num sarcasmo

E agora a sombra versperal morreu...


Chegou a Noite... E para mim, meu anjo,

Teu canto agora é um salmodiar de arcanjo,

É a música de Deus que vem do Céu!

- Augusto dos Anjos, em "Eu e outras poesias".



Psicologia de um vencido

Eu, filho do carbono e do amoníaco,

Monstro de escuridão e rutilância,

Sofro, desde a epigênese da infância,

A influência má dos signos do zodíaco.


Profundissimamente hipocondríaco,

Este ambiente me causa repugnância...

Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia

Que se escapa da boca de um cardíaco.


Já o verme - este operário das ruínas -

Que o sangue podre das carnificinas

Come, e á vida em geral declara guerra,


Anda a espreitar meus olhos para roê-los,

E há de deixar-me apenas os cabelos,

Na frialdade inorgânica da terra!

- Augusto dos Anjos, em "Eu e outras poesias".



Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos (Engenho Pau d'Arco, Paraíba, 20 de abril de 1884 - 12 de novembro 1914, Leopoldina, Minas Gerais). Poeta, formado em direito, não advogou, dedicou-se ao magistério. Seu único livro, "Eu", foi publicado em 1912, pouco antes da virada modernista de 1922.